A Morte da Morte na Morte de Cristo é uma obra polêmica, cujo intuito é mostrar, entre outras coisas, que a doutrina da redenção universal é antibíblica e destrutiva para o evangelho. Há muitos para quem, provavelmente, ela não se reveste de qualquer interesse. Aqueles que não vêem necessidade de precisão doutrinária e nem têm tempo para os debates teológicos que mostram haver divisões entre os chamados evangélicos, bem poderão lamentar esta edição. Outros poderão achar que o próprio som da tese de Owen é tão chocante que até mesmo se recusem a ler seu livro, mostrando assim seu preconceito causado por uma paixão pelas suas próprias suposições teológicas. Porém, esperamos que esta edição chegue às mãos de leitores dotados de espírito diferente. Hoje em dia há sinais de um renovado interesse pela teologia da Bíblia — uma nova disposição em submeter a teste as tradições, para pesquisar as Escrituras e para meditar sobre as questões da fé. É para quem compartilha dessa disposição que o tratado de Owen é dirigido, na crença de que nos ajudará em uma das mais urgentes tarefas que desafiam a cristandade evangélica atual — a recuperação do evangelho, ou melhor, o seu redescobrimento.
Esta última observação pode deixar alguns em atitude defensiva; mas parece ser confirmada pelos fatos.
Não há dúvida de que o mundo evangélico de nossos dias encontra-se em um estado de perplexidade e flutuação. Em questões como na prática do evangelismo, no ensino sobre a santidade, na edificação da vida das igrejas locais, na maneira dos pastores tratarem com as almas e exercerem a disciplina há evidências de uma insatisfação generalizada com as coisas conforme elas estão, bem como de uma insatisfação geral acerca do caminho à frente. Esse é um fenômeno complexo, para o qual muitos fatores têm contribuído. Porém, se descermos até à raiz da questão, descobriremos que essas perplexidades, em última análise, devem-se ao fato que temos perdido de vista o evangelho bíblico. Sem o percebermos, durante os últimos cem anos temos trocado o evangelho por um substitutivo que, embora lhe seja semelhante quanto a determinados pormenores, trata-se de um produto inteiramente diferente. Daí surgem as nossas dificuldades; pois o produto substitutivo não corresponde às finalidades para os quais o evangelho autêntico do passado mostrou-se tão poderoso. O novo evangelho fracassa notavelmente em produzir reverência profunda, arrependimento profundo, humildade profunda, espírito de adoração e preocupação pela situação da Igreja. Por quê? Cumpre-nos sugerir que a razão jaz em seu próprio caráter e conteúdo.
Não leva os homens a terem pensamentos centrados em Deus, temendo-O em seus corações, mesmo porque, primariamente, não é isso que o novo evangelho procura fazer. Uma das maneiras de declararmos a diferença entre o novo e o antigo evangelho é afirmar que o novo preocupa-se por demais em "ajudar" o homem — criando nele paz, consolo, felicidade e satisfação — e pouco demais em glorificar a Deus.
O antigo evangelho também prestava "ajuda" — mais do que o novo, na realidade. Mas fazia-o apenas incidentalmente — visto que sua preocupação primária sempre foi a de glorificar a Deus. Era sempre e essencialmente uma proclamação da soberania divina em misericórdia e juízo, uma convocação para os homens prostrarem-se e adorarem ao todo-poderoso Senhor de quem os homens dependem quanto a todo bem, tanto no âmbito da natureza quanto no âmbito da graça. Seu centro de referência era Deus, sem a mínima ambigüidade. Porém, no novo evangelho o centro de referência é o homem. Isso é a mesma coisa que dizer que o antigo evangelho era religioso de uma maneira que o novo evangelho não o é. Enquanto que o alvo principal do antigo era ensinar os homens a adorarem a Deus, a preocupação do novo parece limitar-se a fazer os homens sentirem-se melhor. O assunto abordado pelo antigo evangelho era Deus e os Seus caminhos com os homens; e o assunto abordado pelo novo é o homem e a ajuda que Deus lhe dá. Nisso há uma grande diferença. A perspectiva e a ênfase inteiras da pregação do evangelho se alteraram.
Dessa mudança de interesses originou-se a mudança de conteúdo, pois o novo evangelho na realidade reformulou a mensagem bíblica no suposto interesse da prestação de "ajuda" ao homem. De acordo com isso, não são mais pregadas verdades bíblicas tais como a incapacidade natural do homem em crer, a eleição divina e gratuita como a causa final da salvação, e a morte de Cristo especificamente pelas Suas ovelhas. Essas doutrinas, segundo o novo evangelho, não "ajudam" o homem; mas antes, contribuem para levar os pecadores ao desespero, sugerindo-lhes que eles não podem salvar-se, através de Cristo, pela sua própria capacidade. (Nem é considerada a possibilidade desse desespero ser salutar; antes, é aceito como ponto pacífico que o mesmo não é saudável, visto que destroçaria a nossa auto-estima.) Sem importar exatamente como seja a questão (falaremos mais a esse respeito, mais adiante), o resultado dessas omissões é que apenas uma parcela do evangelho bíblico está sendo pregada como se fosse a totalidade do mesmo; e, uma meia-verdade que se mascara como se fosse a verdade inteira torna-se uma mentira completa. Assim, apelamos aos homens como se eles todos tivessem a capacidade de receber a Cristo a qualquer momento. Falamos sobre a Sua obra remidora como se Ele nada mais tivesse feito do que morrer para capacitar-nos a nos salvarmos, mediante o nosso crer. Falamos sobre o amor de Deus como se isso não fosse mais do que a disposição geral de receber qualquer um que queira voltar-se para Deus e confiar nEle. E retratamos o Pai e o Filho não como soberanamente ativos em atrair a Eles os pecadores, mas como se Eles se mantivessem em quieta impotência, "à porta do nosso coração", esperando nossa permissão para entrar. É inegável que é dessa maneira que andamos pregando; e talvez seja assim que cremos. Porém, cumpre-nos dizer decisivamente que esse conjunto de meias-verdades distorcidas é algo totalmente diverso do evangelho bíblico. A Bíblia é contra nós, quando pregamos dessa maneira; e o fato que tal pregação tornou-se a prática quase padronizada entre nós serve apenas para demonstrar quão urgente se tornou que revisássemos toda a questão.
Redescobrir o antigo, autêntico e bíblico evangelho, e fazer nossa pregação e nossa prática ajustarem-se ao mesmo, talvez seja a nossa mais premente necessidade atual. E é precisamente nesse ponto que o tratado da Owen sobre a redenção nos pode ser útil.