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    Agostinho - O triunfo da graça como "alegria soberana"


    ( Imagem Filme - Agostinho )

    Voltemos ao triunfo da graça na vida e na teologia de Agostinho. Ele vivenciou essa graça e a desenvolveu, muito conscientemente, como sendo a teologia da "alegria soberana". R. C. Sproul afirma que hoje a igreja está, em grande medida, no cativeiro pelagiano. Provavelmente, a prescrição para a cura seria que a igreja, especialmente os' amantes da soberania de Deus, recuperassem uma dose saudável da doutrina da "alegria soberana" de Agostinho. Muito do pensamento e da pregação cristã em nossos dias — inclusive o pensamento e a pregação reformados — não compreendeu o fundamento sobre a qual a graça realmente triunfa, isto é, por meio da alegria.

    Conseqüentemente, a Reforma hoje se torna um agostinianismo parcial, em parte bíblico e em parte formoso.

    A vida e o pensamento de Agostinho nos leva de volta a essa fonte de alegria. Pelágio, monge britânico que viveu em Roma nos dias de Agostinho, ensinava que "embora a graça possa facilitar a conquista da justiça, não é necessária para que isso ocorra". Pelágio rejeitou a doutrina do pecado original e afirmou que a natureza humana era boa em sua essência e capaz de fazer tudo que lhe fosse ordenado. Esse foi o motivo pelo qual Pelágio se escandalizou ao ler nas Confissões de Agostinho: "Dê-me graça [O Senhor] para fazer o que ordenas, e ordena-me a fazer o que tu queres! O santo Deus quando teus mandamentos são obedecidos, é do Senhor que recebemos o poder de obedece-los". Pelágio entendia essa afirmação como uma violação da bondade, da liberdade e da responsabilidade humanas; se Deus precisa dar o que ordena, então somos incapazes de fazer o que nos manda; conseqüentemente, não somos responsáveis por fazer o que ele nos manda, e a lei moral se desfaz.

    Agostinho não chegou a este ponto de vista do dia para a noite. Em seu livro Sobre a liberdade da vontade, escrito entre 388 e 391, defendeu o livre arbítrio de uma maneira que fez com que, posteriormente, Pelágio citasse esse livro contra o próprio Agostinho. Mas, dez anos mais tarde, quando escreveu as Confissões, o problema estava resolvido. Aqui está o que ele escreveu (este pode ser um dos parágrafos mais importantes para se compreender o âmago do pensamento de Agostinho, e a essência do agostinianismo):

    Durante todos estes anos [de rebelião], onde estava meu livre arbítrio? Qual era o lugar obscuro e secreto onde ele estava e do qual foi convocado num instante a fim de que me inclinasse ao teu jugo suave? Quão doce foi para mim estar liberto subitamente destes prazeres infrutíferos que um dia temia perder! Tu os afastaste de mim, tu que és a alegria soberana e verdadeira. [Eis a frase chave para se entender a alma do agostinianismo.] Tu os afastavas de mim e tomavas seu lugar, tu que és mais doce que qualquer prazer, embora não o seja para a carne e o sangue, tu que excedes em brilho toda luz, não obstante mais oculto que qualquer segredo nos nossos corações, tu que sobrepujas qualquer honra, embora não o seja assim aos que se exaltam a si mesmos (...) O Senhor, meu Deus, minha Luz, minha Riqueza, e minha Salvação.

    Este é o entendimento de Agostinho a respeito da graça. Graça é Deus concedendo-nos alegria soberana nele, que triunfa sobre o prazer do pecado. Em outras palavras, Deus trabalha profundamente no coração humano a fim de transformar as fontes de gozo, para que possamos amar a Deus mais do que ao sexo ou a qualquer outra coisa. Amar a Deus, na mente de Agostinho, nunca se reduz a meros feitos de obediência ou a atos realizados com a força da vontade. Ele nunca comete o erro de citar João 14.15 ("Se vocês me amam, obedecerão aos meus mandamentos") para reivindicar que amor é o mesmo que obedecer aos mandamentos de Cristo, pois o texto afirma que obedecer aos mandamentos de Cristo é o resultado do amor a Cristo. "Se você me ama, então me obedecerá." Nem comete o erro de citar l joão 5.3 ("Porque nisto consiste o amor de Deus: em obedecer aos seus mandamentos; e os seus mandamentos não são pesados"), negligenciando o pormenor de que amar a Deus significa obedecer aos seus mandamentos de tal maneira que seus mandamentos não sejam pesados. Amar a Deus é estar tão plenamente satisfeito em Deus e tão encantado com respeito a tudo o que ele é para nós, que seus mandamentos cessam de ser pesados. Agostinho entendeu isso. E precisamos dele urgentemente para nos ajudar a recuperar a raiz de todo viver cristão na alegria triunfante em Deus, que derriba do trono a soberania da ociosidade e luxuria e ganância.

    Para Agostinho, amar a Deus é sempre um deleitar-se em Deus e em outras coisas só por amor a Deus. Ele define isso claramente no livro Sobre a doutrina cristã (On Christian Doctrine, III, x, 16). "Eu chamo de 'caridade' [isto é, amor a Deus] o movimento da alma de deleitar-se em Deus somente por causa dele; também o deleitar-se em si próprio e em seu próximo somente por causa de Deus". Amar a Deus sempre é compreendido por Agostinho como sendo essencialmente o deleitar-se em Deus e em qualquer outra coisa por causa dele.

    Agostinho analisou seus próprios motivos. Tudo brota do prazer. Ele percebeu isso como sendo um princípio universal: "Todo homem, qualquer que seja sua condição, deseja ser feliz. Não há homem algum que não deseje tal coisa, e cada um a deseja com tanto ardor que prefere ser feliz acima de tudo mais que se possa ter; seja quem for, de fato, mesmo que deseje outras coisas, somente as deseja a fim de ser feliz". E isso o que guia e governa a vontade, o que consideramos ser nosso deleite.
    Mas aqui se encontra o ponto que deixou Pelágio tão irado. Agostinho acreditava que não somos capazes de determinar qual será esse nosso deleite.

    Quem pode ter tal motivo presente em sua mente a ponto de influenciá-la a crer? Quem pode receber em sua mente alguma coisa que não lhe dê deleite? Mas quem pode assegurar-se que alguma coisa que o agrade haverá de acontecer? Ou que ele se deleitará naquilo que lhe suceder? Se as coisas que servem para nos levar para mais perto de Deus nos deleitam, isso se deve não ao nosso próprio capricho, diligencia ou obras notórias, mas à inspiração de Deus, a qual, por sua vez, se deve à graça que nos é concedida.

    Portanto, na visão de Agostinho, a graça salvadora, a graça que converte, consiste em Deus nos dar a alegria soberana em Deus, que triunfa sobre todas as outras alegrias, e assim inclina a vontade. A vontade está livre para se mover em direção a qualquer coisa em que se deleite mais completamente, mas não está ao nosso alcance determinar qual será essa alegria soberana. Portanto, Agostinho conclui:
    Se o homem não conhecer o caminho da verdade, seu livre arbítrio, verdadeiramente, não terá benefício algum exceto para pecar; e mesmo quando ele começa a conhecer sua responsabilidade e seu objetivo correto, a menos que se deleite e se sinta feliz em fazê-lo, não fará sua obrigação, não se dedicará a ela nem viverá corretamente. Assim sendo, a fim de que tal processo venha a cativar nossa afeição, "o amor de Deus é derramado amplamente em nossos corações" não pela livre vontade que se origina em nós mesmos, mas "pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado" (Rm 5.5).

    Em 427, revendo toda uma vida de pensamentos a respeito desse assunto, Agostinho escreveu a Simplício: "Ao responder esta pergunta, tentei fortemente sustentar que a vontade humana tem livre escolha, mas a graça de Deus prevaleceu". Controvérsia era a sua ocupação diária. Ao fim de sua vida, ele já havia

    registrado mais de oitenta heresias contra as quais batalhara. Por que tal labuta defensiva, visto que ele almejava profundamente o deleite em Deus? Ele nos fornece uma resposta nas Confissões: "É certamente verdade que a refutação dos hereges dá maior proeminência aos princípios de tua igreja [O Deus] e aos princípios da sã doutrina. Era realmente necessário que houvesse heresias, a fim de que os firmes na fé se distinguissem dos demais".

    Mas havia uma razão mais profunda para o seu combate extenso na controvérsia pelagiana. Quando foi indagado pelo seu amigo Paulino por que empregava tanta energia na sua disputa com Telzgío, mesmo sendo ele já velho com seus 70 anos, respondeu: "Primeiro, porque nenhum assunto [exceto a graça] me dá maior prazer. Pois o que há de ser mais atraente a nós homens doentes do que a graça, a graça que nos cura; para nós homens preguiçosos, do que a graça, a graça que nos anima; para nós homens desejosos de agir, do que a graça pela qual somos auxiliados"? Essa resposta possui ainda mais autoridade quando se tem em mente que toda graça curadora, inspiradora, auxiliadora e capacitadora na qual Agostinho se deleita é a concessão da parte de Deus de um gozo irresistível e triunfante. A graça governa a vida, concedendo alegria suprema na soberania de Deus.

    Agostinho é completamente comprometido com a responsabilidade final da escolha humana, mesmo que essa escolha seja governada inteiramente pelos deleites da alma que são, ao final, determinados por Deus. Pressionado a dar uma explicação, ele está disposto, ao final, a ficar com as Escrituras, que nos falam desse "mistério profundo". Isso pode ser visto nas duas citações seguintes:

    Se alguém nos obrigar a examinar esse mistério profundo, que este indivíduo é persuadido a se render, e aquele indivíduo não o é, há somente duas coisas que me ocorrem, que eu gostaria de antecipar como sendo minha resposta: "O profundidade da riqueza!" (Rm 11.33) e "Acaso Deus é injusto?" (Rm 9.14). Se o indivíduo está insatisfeito com tal resposta, que procure discutir com alguém mais erudito: mas, que tome cuidado para não incorrer em presunção.

    Que esta verdade, portanto, esteja fixa e inabalável na mente da pessoa que é sobriamente piedosa e estável na fé: em Deus não há injustiça. Acreditemos também, muito firme e tenazmente, que Deus tem misericórdia de quem ele quer e que endurece a quem ele quer, isto é, ele tem ou não tem misericórdia de quem ele quer. Creiamos que isso pertence a uma certa eqüidade encoberta, que não pode ser explorada por qualquer padrão humano de medição, mesmo que seus efeitos se observem nos negócios humanos e nas organizações terrenas.

    O fato de que a graça governa a vida pela concessão da alegria mais elevada na supremacia de Deus esclarece porque o conceito de liberdade cristã é tão radicalmente diferente no pensamento de Agostinho e no de Pelágio. Para Agostinho, liberdade é amar a Deus e seus caminhos tão profundamente que a própria experiência de escolha é transcendida. O ideal da liberdade não é o desejo autônomo balanceado com o equilíbrio soberano entre o bem e o mal. O ideal da liberdade é o cristão perceber espiritualmente a beleza de Deus, e estar tão completamente envolto no amor a Deus a ponto de nunca se ver tentado a encontrar algum equilíbrio entre Deus e uma escolha alternativa. Ao contrário, a pessoa transcende a experiência da escolha e vive sob a influência contínua da alegria soberana de Deus. Na visão de Agostinho, a experiência cônscia de precisar contemplar escolhas era um sinal, não da liberdade da vontade, mas da desintegração do querer. A luta pela escolha é um mal necessário neste mundo decaído até o dia em que o discernimento e o deleite se unem numa perfeita compreensão do que é infinitamente deleitável, ou seja, Deus.

    O que se segue à visão de Agostinho com respeito à graça, como sendo a alegria soberana que triunfa sobre os "prazeres ilícitos", é que a vida cristã, em sua totalidade, é vista como sendo uma busca incansável pelo gozo pleno em Deus. Ele afirma: "A vida de um bom cristão, em sua totalidade, é um desejo santo". Em outras palavras, a chave para um viver cristão é ter sede e fome de Deus. E uma das razões principais pelas quais as pessoas não entendem ou não experimentam a soberania de graça nem o modo como este opera pelo despertar da alegria soberana, é porque sua fome e sede de Deus são mínimas. O intenso desejo, a ponto da exasperação, de ser arrebatado em adoração e santificação, é incompreensível para muitos. Aqui está o alvo e o problema, como Agostinho o enxergava:

    A alma dos homens esperará debaixo das sombras de tuas asas; serão embriagadas pela plenitude de tua casa; e das torrentes de teus favores dar-lhe-ás a beber; pois em ti estão as fontes da vida, e na tua luz veremos a luz. Dê-me um homem apaixonado: ele entende o que quero dizer. Dê-me alguém que anseia; dê-me alguém faminto; dê-me alguém distante neste deserto, sedento e que suspira pela fonte da pátria Eterna. Dê-me este tipo de homem e ele me entenderá. Mas se falo a um homem frio, ele não saberá do que estou falando.

    Estas palavras de Agostinho deveriam fazer nosso coração arder por um anseio renovado por Deus. E deveriam nos ajudar a entender porque é tão difícil expor a gloria do Evangelho a tantas pessoas. A razão é que são muitos os que não anseiam por muita coisa. Eles só estão beirando a margem. Não estão apaixonados nem interessados por coisa alguma. São "frios", não somente no que concerne à glória de Cristo no Evangelho, mas com respeito a tudo. Até mesmo quanto aos seus pecados, eles preferem beliscar a tragar com entusiasmo.

    John Piper