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    Entrevista com Lutero – A Vocação Monástica



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    Quando poderei tornar-me piedoso e fazer o suficiente para ter um Deus misericordioso!

    Repórter - Em maio de 1505, o doutor cursava direito na Universidade de Erfurt, uma das mais renomadas da Alemanha. Dois meses depois, o doutor abandonou o curso e ingressou no convento dos agostinianos. O que o levou à vida monástica?

    Lutero — A mesma pergunta me fez meu pai. Posso dar a você a resposta que dei a ele. A causa acidental foi uma experiência muito pessoal pela qual eu passei no dia 2 de julho daquele ano. Estava caminhando por uma trilha nas proximidades de Stotternhein quando um grande temporal desabou naquelas mediações. Eram raios, relâmpagos e trovões. Uma dessas descargas elétricas entre a nuvem e o chão quase me atingiu. Foi uma sensação horrível. Pensei que morreria ali mesmo. Então bradei aos céus: "Ajuda-me, Santa Ana, e eu me tornarei monge!". De volta a Erfurt, são e salvo, despedi-me de meus colegas e cumpri a promessa.

    Repórter - E a causa não acidental?

    Lutero — A causa acidental espremeu o tumor e pôs a vocação para fora. A causa não acidental foi uma decisão religiosa. Uma busca de solução para a minha inquietude interior. Eu me apavorava muito com a majestade de Deus. Até então, em nenhum momento tinha conseguido achar consolo em meu batismo e me perguntava: "Oh! Quando finalmente poderei tornar-me piedoso e fazer o suficiente para ter um Deus misericordioso?". Através de pensamentos como esses fui incitado em direção à vida monástica.

    Repórter — Com que idade o doutor se fez monge?

    Lutero — Aos 21 anos. Àquela altura eu já era mestre em artes pela Universidade de Erfurt e professor de iniciantes na mesma escola.

    Repórter — Qual era o seu currículo até então?

    Lutero — Dos 5 aos 13 anos, fui aluno da Escola Municipal de Mansfeld, para onde minha família tinha se mudado. Estudei rudimentos de latim, canto e as expressões principais da fé cristã, como os Dez Mandamentos, o Pai-Nosso, a Ave-Maria, o Credo etc. Da primavera de 1497 à primavera seguinte, passei pela escola latina de Magdeburgo. Em seguida fui para Eisenach, onde fiquei três anos, de 1498 a 1501. Aí freqüentei a escola do trívio, assim chamada porque estudávamos as três disciplinas fundamentais — gramática, retórica e dialética. Passei a minha adolescência nessa cidade e fiz muitas e preciosas amizades, tanto com alguns dos meus mestres, entre os quais cito Trebónio e Wigand, como com certas famílias radicadas na cidade — lembro-me bem do casal Cotta e do casal Schalb.1 Na segunda metade de 1501 é que fui para Erfurt, onde fiz a faculdade de artes, de três anos de duração. Estudei o que chamamos de quadrívio — geometria, aritmética, música e astronomia — e também tive de participar dos cursos de ética e metafísica. Recebi o diploma de bacharel em artes em 1502, com 19 anos incom-pletos. No dia 7 de janeiro de 1505 ascendi ao grau de mestre em artes. Daí para frente eu tinha três opções: medicina, teologia ou direito. Esco¬lhi a última, talvez meio influenciado por meu pai.

    Repórter — Quem pagava os seus estudos?

    Lutero - Meu pai, João Lutero, e minha mãe, Margaret Ziegler Lutero, eram de origem humilde. Ele nasceu e viveu por algum tempo na roça, pois meus avós eram camponeses. Por não ser o filho mais velho, papai não herdou nada dos pais e se mudou para Eisenach, onde conseguiu emprego nas minas de cobre existentes na região. Eles lutavam muito para nos educar. Minha mãe costumava buscar lenha na floresta e eu a acompanhava. Por essa razão, eles não puderam me sustentar o tempo todo. Em Eisenach eu cantava e mendigava pelas ruas para receber alguns trocados e era, de certa forma, bem-sucedido. Depois, meu pai melhorou de vida, mas a essa altura, eu já me mantinha por conta própria dando aulas para novos estudantes da universidade.

    Repórter - O doutor se chama Martinho por causa de São Martinho?

    Lutero — Isso mesmo. Fui batizado no dia de São Martinho, 11 de novembro. Esse ex-militar, nascido na Hungria, no início de quarto século, abraçou a carreira religiosa aos 40 anos e organizou, o quanto se saiba, a primeira fundação monástica da Europa, perto de Poitiers, na França, onde se travou a famosa batalha que deu vitória aos ingleses na Guerra dos Cem Anos, em 1356. Era um homem sem muitos recursos intelectuais, mas de bastante ação e visão. Morreu aos 81 anos, desprezado por vários clérigos e honrado por muitos leigos e ascetas.

    Repórter - O livro Legenda Áurea, de Jacopo de Varazze, atribui muitos e fantásticos milagres a São Martinho. Diz que ele curou muitos doentes, ressuscitou mortos, expulsou demônios — até mesmo de uma vaca — e dava ordens às chamas de fogo, às ondas do mar, às plantas e aos bichos, e todos lhe prestavam obediência. A uma serpente que atravessava o rio a nado, Martinho teria dito: "Em nome do Senhor, ordeno que retorne". E, diante da ordem do santo, ela imediatamente se virou e foi para a outra margem. O doutor acredita nessas histórias?

    Lutero — O livro de Jacopo é muito lido. Mais do que a Bíblia. Enquanto nos últimos trinta anos do século passado (de 1470 a 1500) foram feitas 128 edições da Bíblia, vieram à luz pelo menos 156 edições de Legenda Áurea — 87 em latim, 25 em alemão, dezessete em francês, dez em italiano, dez em holandês, quatro em inglês e três em boêmio.2 Para falar das proezas de São Martinho, Jacopo se baseia no Diálogo de Severo e Galo (que eram discípulos do santo). Para mim são um monte de lendas, sem a menor credibilidade. Todavia, São Martinho foi um homem dedicado a Deus e ao próximo, principalmente aos pobres e perseguidos. Conta-se que, certa vez, ele viu um homem quase nu e se apiedou dele. Então pegou a espada e dividiu em dois o manto que usava, dando a metade ao pobre e cobrindo-se com a metade que lhe restava.

    Repórter — Então o doutor nasceu em Eisenach...

    Lutero - Nasci em Eisleben, naTuríngia, no dia 10 de novembro de 1483, a poucos passos da Igreja de Pedro e Paulo, de estilo gótico, onde fui batizado no dia seguinte. Minha cidade natal é muito antiga. Antes chamava-se Islebo ou Yslava. A primeira referência a ela tem mais de 700 anos. Mas pouco me demorei ali. Logo meu pai se mudou para Mansfeld.

    Repórter - Voltemos ao convento agostiniano em Erfurt. Como foi a sua ordenação sacerdotal?

    Lutero - Como quase todos os monges eram sacerdotes, comecei a me preparar para ser um deles. Em setembro de 1506 fiz minha profissão perpétua. Para poder celebrar a missa, estudei as 89 lições do Canonis Missae Expositio, de Gabriel Biel. No dia 3 de abril de 1507, fui solenemente ordenado sacerdote na Catedral de Erfurt. Estava com 23 anos. Celebrei minha primeira missa um mês depois, no dia 2 de maio, na mesma catedral. Meu pai estava presente sem minha mãe, que já havia morrido.

    Repórter — Como o doutor se saiu?

    Lutero — Não gosto nem de me lembrar! Quase abandonei a celebração pela metade, por causa daquela inquietação frente à majestade de Deus. Enquanto consagrava a hóstia e o vinho da missa, a idéia de santidade divina se impôs com uma força tão intensa a meu espírito que tive uma vontade enorme de fugir do altar, na presença de todos. Pensei que iria morrer naquele momento e naquele lugar. Foi o meu superior, João von Staupitz, morto há mais de vinte anos, de quem eu me considerava filho espiritual, que me reteve pelo braço no altar. Isso aconteceu à vista de meu pai, de meu parente Conrado Huter, de meu velho amigo João Braun, do conselheiro de Mansfeld, da família Schalb, e de outros amigos que vieram de diversas cidades a meu convite.

    Repórter — Seu pai se alegrou com a sua ordenação sacerdotal?

    Lutero - No banquete que se seguiu à celebração eucarística, meu pai se mostrou ainda contrariado com a minha decisão de em julho de 1505 abandonar o curso de direito e ingressar na vida monástica. Quando alguns frades tomaram a minha defesa, meu velho e duro pai lhes disse: "Não ouviste nunca que os filhos devem obedecer aos pais? E vós, homens doutos, não haveis nunca lido na Santa Escritura que está ordenado aos filhos que honrem seu pai e sua mãe? Preze a Deus que a tranqüilidade e a paz de que falais não venham a ser enganosas mentiras do Príncipe do Mal!"

    Repórter - Seus pais eram religiosos?

    Lutero - Sem dúvida, mas como aqueles que se contentam com pou¬ca coisa. Vez e outra, minha mãe se envolvia com bruxaria.

    Repórter — Todo mundo chama-o de doutor. Por quê?

    Lutero - Fui convocado e constrangido, querendo ou não, a tornar-me doutor, por pura obediência. Aí tive de aceitar o ofício de doutor e prestar o juramento de pregar e ensinar com fidelidade e pureza minha queridíssima Sagrada Escritura. Obtive o grau de doutor em outubro de 1512 na Universidade de Wittenberg, um mês antes de completar 29 anos. A essa altura, eu já havia me mudado definitivamente de Erfurt para Wittenberg para me preparar para o doutorado, em obediência ao meu provincial Staupitz. Meu doutorado durou pouco mais de um ano. Mas entre meu bacharelado em teologia, em março de 1509, e a obtenção do grau de doutor, passaram-se três anos e meio. Embora conquistado não por decisão própria, hoje muito agradeço o preparo e o título de doutor. Graças a ele, meus opositores não podem me chamar de "João-Ninguém". Foi uma conquista providencial.

    Repórter- Talvez não seja do seu inteiro agrado, mas o doutor me permite invadir a sua privacidade?

    Lutero - Se for para testemunho do evangelho, você tem minha permissão.

    Repórter - Quero saber mais um pouco sobre as lutas interiores que teve quando estava no convento de Erfurt.

    Lutero — De fato esse é um assunto muito pessoal, mas vou tentar explicar. Mormente porque há por aí pessoas que exageram meus problemas daquela época e, por interesse próprio, espalham que eu era um doente mental. Outros, porém, vão para o lado oposto e afirmam que eu não tive crise nenhuma, que seria pura invenção de minha parte — uma estratégia montada para justificar minhas rixas com a Igreja. O problema todo girou em torno de duas revelações das Escrituras que não podem, nem devem ser desacompanhadas de pelo menos uma terceira. Refiro-me primeiro à doutrina da santidade absoluta de Deus e à doutrina da pecaminosidade absoluta do homem. Ao contemplar a majestade de Deus e o seu pecado, o profeta Isaías gritou: "Ai de mim! Estou perdido!" (Is 6.5). Quando viram a Jesus em glória no monte da transfiguração, os discípulos também "prostraram-se com o rosto em terra e ficaram atemorizados" (Mt 17.6). Há de se juntar a essas duas revelações a imagem de um Deus não apenas santo, mas também misericordioso, capaz de amar, de perdoar e de justificar o pecador, mediante uma fé especial. Ora, uma pessoa que só assume a concepção de um Deus majestático, que exige uma justiça perfeita, entra em desespero — sobretudo se é muito sensível, como no meu caso. Eu pensava no pecado, e não na graça de Deus. Esse foi o cerne das minhas lutas no convento até redescobrir a justificação pela graça, mediante a fé posta na pessoa e no sacrifício de Jesus.

    Elben Lenz