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    Série Entrevistas com Lutero - A Dieta de Worms



    ( Artigo disponível em áudio - Ouvir ou Download )




    Minha consciência está cativa à Palavra de Deus

    Repórter — Qual foi o momento mais emocionante de sua vida até agora?

    Lutero — Foi quando tive de comparecer perante o todo-poderoso imperador Carlos V e outras autoridades do Sacro Império Romano na cidade de Worms, em abril de 1521, para reafirmar ou não, a minha fé.

    Repórter - Onde fica Worms?

    Lutero - Worms fica às margens do rio Reno, bem ao sul de Wittenberg, não muito longe de Mainz. E uma cidade alemã muito antiga, famosa por ser, há mais de 900 anos, sede episcopal da Igreja. No próximo ano, a cidade vai comemorar o quarto centenário da Concordata de Worms, quando o papa francês Calisto II e o imperador Henrique V assinaram um acordo pondo fim à demorada questão das investiduras. Em Worms também, há um quarto de século, o imperador Maximiano criou um tribunal imperial encarregado de regular os conflitos internos.

    Repórter- O doutor mencionou a questão das investiduras...

    Lutero — Foi uma controvérsia entre o Estado secular e o Estado ecle¬siástico sobre a interferência de governantes seculares na designação e posse de bispos e abades. Pelo acordo, assinado em 23 de setembro de 1122, o imperador renunciava ao suposto direito de investir tais pessoas com anel e báculo, símbolos de autoridade espiritual, podendo fazê-lo apenas com o cetro, símbolo de poder temporal. O papa, por sua vez, assegurava ao imperador que, na Alemanha, as eleições de bispos e abades se realizariam em sua presença.

    Repórter — O que o doutor foi fazer em Worms?

    Lutero — Fui convocado pelo imperador Carlos V para comparecer à Dieta que estava ali sendo realizada desde fevereiro. Dieta é o parlamen¬to do Sacro Império Romano na Europa.

    Repórter — Parece que o imperador ainda era um jovem de vinte e tantos anos.

    Lutero — De 21 anos. Começou a reinar sobre o Sacro Império Romano aos 19. Era filho de Filipe, o Belo, arquiduque da Áustria, e de Joana, a Louca (tem esse nome porque perdeu a razão aos 27 anos), rainha de Castela. Era neto, por parte de mãe, de Fernando de Aragão e de Isabel, chamados de "os reis católicos". Por parte de pai, Carlos V era neto do imperador Maximíano e de Maria de Borgonha. Embora tenha sido profundamente influenciado pelo humanista holandês Erasmo de Roterdã, que também desejava uma reforma dentro da Igreja, Carlos V é católico fervoroso.

    Repórter - Dizem que Carlos V governa um "imenso império sobre o qual o sol jamais se põe".

    Lutero — O Sacro Império Romano ocupa uma extensão muito grande na Europa Central. E formado pelo Império Germânico e pelos reinos da Boêmia, da Borgonha, da Itália e das duas Sicílias. Ao nosso redor estão os reinos da França, Inglaterra, Dinamarca, Hungria, Prússia e Polônia. Parte de nosso território no extremo sul é cortado pelos Estados Pontifícios. Há quase 600 anos, a partir de Oto I, em 962, o Império é governado por reis germânicos. Desde o século passado são os príncipes alemães que elegem o supremo mandatário de todo o Império, que vai do mar do Norte ao Mediterrâneo.

    Repórter—O seu caso já não estava resolvido com a excomunhão? Por que o doutor teria de comparecer à Dieta?

    Lutero - Para a Igreja tudo parecia resolvido com a minha expulsão no início de janeiro. Era costume, no entanto, que o poder civil desse respaldo às decisões da Igreja. Como Frederico, o Sábio, príncipe da Saxônia, se recusou a homologar a sentença romana e como ele não era totalmente soberano, o imperador foi convencido pelo príncipe a convocar a Dieta. Roma não gostou muito da idéia e alimentou a esperança de que o imperador não me chamasse à dita assembléia. Carlos V, por sua vez, não sendo alemão e sabendo da simpatia que eu desfrutava entre o povo e até entre alguns príncipes, achou por bem me convocar para a Dieta e me fornecer um salvo-conduto, uma licença escrita para eu viajar em segurança para Worms. No dia 24 de março, Gaspar Sturn, o arauto imperial, me entregou pessoalmente em Wittenberg tanto a convocação como o salvo-conduto. O imperador foi muito gentil comigo. Chamou-me de "honorável, querido e piedoso doutor". O núncio pontifício Jerônimo Aleandro me chamava de "cão, serpente, demônio e miserável".

    Repórter — Qual foi a sua reação?

    Lutero — Recebi a intimação com calma. Continuei a pregar normal¬mente até o dia da viagem. Fui advertido por alguns queridos irmãos a não ir e a não confiar no salvo-conduto. O reformador tcheco João Huss, 106 anos antes, havia sido preso e queimado à estaca (em 6 de julho de 1415), mesmo tendo em mãos o salvo-conduto. Expliquei a eles que deveríamos deixar com o Senhor os riscos e adiantei: "Se aquele que conservou vivos os três homens lançados na fornalha em chamas por Nabucodonosor não quiser conservar a minha cabeça, isso pouco importa".
    Repórter - Alguém de Wittenberg o acompanhou na viagem a Worms?

    Lutero — Além do arauto, que ia a cavalo à nossa frente, viajei com Nicolau von Amsdorf, o amigo que me acompanhou a Leipzig em 1519, Pedro Swaven, um nobre da Pomerânia que estudava teologia em Wittenberg, e João Petzensteiner, um monge agostiniano. Saímos num carro coberto, oferecido pela prefeitura de Wittenberg, no dia 2 de abril. Viajamos 480 quilômetros em direção ao sul e fizemos paradas em Leipzig, Naumburgo, Weiner e Erfurt. Em vários lugares, fomos recebidos com muito amor e entusiasmo. Em Erfurt, por exemplo, tive o prazer de abraçar João Jáger, reitor da universidade, e os pastores Justo Jonas e Lange. Em "Weiner, uma multidão veio ao nosso encontro e me lembrei mais uma vez da morte de Huss em Constança. Eu lhes respondi: "Ainda que fizessem uma fogueira que subisse até o céu entre Wittenberg e Worms, eu iria até lá, confessaria Jesus Cristo e o deixaria reinar". Na proximidade de Worms, o franciscano Glápio, um espertalhão, conselheiro e confessor de Carlos V, me convidou para um encontro no castelo do cavaleiro de Sickingen. Porém, logo percebi que era uma armadilha para eu chegar fora do prazo estipulado pelo imperador. Quase à porta de Worms, recebi uma carta de Jorge Espalatino, assessor de Frederico, o Sábio, e tradutor dos meus livros. Ele me pedia que voltasse imediatamente para Wittenberg, porque eu correria sério risco de vida em Worms. Mas eu estava decidido a comparecer à Dieta mesmo que em Worms houvesse tantos demônios quantas telhas nos telhados. Então entrei em Worms na manhã do dia 16 de abril.

    Repórter - E daí?

    Lutero — Ouvi o som da trombeta que ecoava da torre da Catedral de Worms anunciando a minha chegada. Os membros da corte da Saxônia vieram me receber às portas da cidade e, em pouco tempo, formou-se, sem exagero nenhum, um cortejo de cerca de duas mil pessoas. Fui direto para a Hospedaria dos Cavaleiros de São Jorge e recebi várias visitas até noite adentro. O margrave Filipe de Hessen estendeu-me a mão e me disse: "Deus o ajude!".

    Repórter - Quando o doutor compareceu à Dieta?

    Lutero - No dia seguinte, 17 de abril, às 18 horas. Cheguei com duas horas de atraso porque fomos obrigados a dar muitas voltas pela cidade para chegar ao Palácio Episcopal, tal o número de pessoas que enchiam as ruas para nos saudar.

    Repórter — Quem estava lá?
    Lutero — Eu não contei, mas suponho que havia no recinto no mínimo umas 200 pessoas — o imperador Carlos V e seu irmão Fernando, de 18 anos, seis príncipes-eleitores, o duque de Alba e seus dois filhos, outros 24 duques, oito margraves, sete embaixadores estrangeiros, deputados de dez cidades livres, um grande número de príncipes, condes e barões, o núncio papal, trinta arcebispos, bispos ou prelados. Além do meu amigo e colega Jerônimo Schurf, designado por Frederico, o Sábio, para me servir de conselheiro e defensor.

    Repórter — Como se chamava o núncio apostólico?

    Lutero — Jerônimo Aleandro, um italiano de 41 anos.

    Repórter — E o seu principal inquiridor?

    Lutero — João Eck, de 35 anos, chanceler do arcebispo de Trêves.

    Repórter  - Vejo que um reformador de 38 anos compareceu diante de um imperador de 21 para ser acusado por um promotor papal de 35.

    Lutero — E verdade.

    Repórter — Quanto tempo durou a sessão?

    Lutero — Apesar da gravidade do assunto, a sessão foi muito rápida. Todos os olhos estavam fixos ora em mim, ora num monte de 25 livros de minha autoria, espalhados numa pequena mesa. Parece que o pivô de toda a questão eram os livros. Para o papa manter sua autoridade, eu deveria confessar publicamente que estava errado e renegar meus livros. Daí a pergunta dupla de João de Eck: "Doutor Lutero, o senhor admite que escreveu esses livros e que estava errado no que escreveu?".

    Repórter — O que o doutor respondeu?

    Lutero — Antes de eu dar a minha resposta, Jerônimo Schurf interveio e exigiu a leitura do título de cada livro, o que foi feito. Então, respondi a primeira parte da pergunta: "Sim, estes livros são meus, eu os escrevi e ainda tenho outros títulos que não estão nessa pilha". Quanto à segunda parte da pergunta, eu lhes disse: "Esta pergunta diz respeito a Deus, à sua Palavra e à salvação das almas. Portanto, peço-lhes que me dêem algum tempo para pensar no assunto".

    Repórter  -  O doutor teve muito controle emocional e coragem para pedir tal coisa a pessoas tão poderosas! O parlamento lhe deu o prazo solicitado?

    Lutero - Embora aborrecido, o imperador me deu 24 horas de prazo e marcou a próxima sessão para o dia 18, no mesmo horário e no mes¬mo local. Fui para a hospedaria e passei quase toda a noite em oração, suplicando forças ao meu "Castelo Forte".

    Repórter - E como foi na tarde seguinte?

    Lutero — Ao entrar no Palácio Episcopal, percebi que havia muito mais gente que na véspera. Depois das formalidades, João Eck me perguntou se eu queria defender o conteúdo de todos os livros ou retratar-me apenas de certas afirmações neles contidas. Então fiz um discurso firme, mas circunspecto e polido, primeiro em latim. Depois, repeti tudo em alemão. Expliquei que meus livros eram de três gêneros diferentes. Certo número deles continha apenas verdades evangélicas, reconhecidas até pelos meus adversários. Em outros, eu atacava as ordens e as leis perniciosas do papado, que atormentavam a consciência dos cristãos e levavam a nação alemã à ruína. Nos demais, contestava determinadas pessoas que arrogavam a si o poder romano e se esforçavam por abafar a doutrina evangélica. Então declarei que não me retrataria de coisa alguma, pois, se o fizesse, estaria apoiando a tirania e a impiedade. Todavia, confessei sincera e humildemente que muitas vezes empregara energia e veemência exageradas em meus ataques. Houve um pequeno intervalo durante o qual os príncipes conversaram entre si. A seguir, Eck tomou a palavra em nome do imperador e me censurou por eu ter mostrado ousadia demais e por não ter respondido à pergunta feita.

    Repórter — O doutor calou-se?

    Lutero — Lembro-me muito bem de meu pequeno discurso: "Visto que Vossa Majestade Imperial e Vossas Senhorias me pedem uma resposta categórica, vou dá-la claramente. Minha consciência está cativa à Palavra de Deus. Enquanto não me tiverem convencido pela Sagrada Escritura, não posso, nem quero, retratar-me de coisa alguma, pois é perigoso agir contra a consciência. Não posso falar de outro modo. Eis-me aqui. Que Deus me ajude! Amém".

    Repórter — A luta acabou aí?

    Lutero — Lá pelas oito horas da noite, Carlos V suspendeu a sessão e eu voltei aos meus aposentos, levantei as mãos aos céus e balbuciei, contente, diante de Deus: "Está cumprido! Está cumprido!". Mas a luta não acabou naquela tarde. Por dois dias, uma comissão nomeada pela Dieta e encabeçada pelo arcebispo de Trêves tentou inutilmente fazer um acordo amigável. Percebi claramente que a partir daquele momento eu era um homem condenado tanto pelo papa como pelo imperador, e, portanto, não estaria seguro em lugar algum. Uma semana depois, no dia 26 de abril, eu e três companheiros (Amsdorf, Swaven e Petzensteiner) deixamos Worms, de volta a Wittenberg. Graças ao príncipe-eleitor Frederico, o Sábio, meu protetor, obtive outro salvo-conduto, válido por três semanas apenas.

    Repórter — O doutor chegou a tempo em Wittenberg?

    Lutero — Depois de passar por Friedberg, Hersfeld, Eisenach e Mõhra, ao atravessar uma floresta, quando já anoitecia, fui subitamente "seqüestrado" por alguns cavaleiros armados e levado para o castelo de Wartburgo. Era obra de meu grande amigo Frederico, o Sábio, que queria me prote¬ger da perigosa situação em que me encontrava.

    Repórter — Quais foram os resultados da Dieta de Worms?

    Lutero — Um mês depois de deixarmos Worms e na ausência de muitos notáveis da Dieta, inclusive o príncipe-eleitor da Saxônia, Carlos V fez promulgar em 26 de maio o chamado Edito de Worms, que me colocou sob banimento do império, e ordenou a queima de todos os meus escritos. Parecia uma vitória da Igreja e do Sacro Império Romano. Mas a verdade é outra: depois da Dieta de Worms, tanto o papa como o imperador começaram a perder autoridade. Meus livros não foram destruídos e quase ninguém deixou de me amparar ostensivamente, não obstante a ordem expressa em contrário. A autoridade da Sagrada Escritura, o sola scripture (só a Escritura), relativizou todas as autoridades que pretendiam interpor-se entre Deus e a consciência de um crente. Basta lembrar que, em 1530, nove anos depois da Dieta de Worms, aconteceu a Dieta de Augsburgo, na qual Carlos V foi obrigado a reconhecer que três quartas partes da Alemanha haviam abraçado a reforma e tinham como norma a Confessio Augustana.


    Elben M. Lenz