Em Jeremias (32:39-40) Deus diz: "Dar-lhes-ei um só coração e um só caminho, para que me temam todos os dias"; "Porei o meu temor no seu coração, para que nunca se apartem de mim." E logo no princípio da profecia de Ezequiel (11:19): "Dar-lhes-ei um só coração, espírito novo porei dentro deles; tirarei da sua carne o coração de pedra e lhes darei coração de carne." Deus considera nossa conversão como criação de um novo espírito e um novo coração. Como então poderia Ele reivindicar mais claramente para Si mesmo tudo o que é bom e reto na vontade do homem?
Com isso estão de acordo as orações dos santos. Salomão disse: "O Senhor nosso Deus seja conosco... a fim de que a si incline os nossos corações para andarmos em todos os seus caminhos e guardarmos os seus mandamentos." (1 Rs. 8:57-58). E no Salmo 119 achamos a oração: "Inclina o meu coração a teus testemunhos, e não à cobiça" (v. 36). Davi pede a Deus que crie nele um coração puro, e renove nele um espírito reto, reconhecendo que seu coração está cheio de impureza e seu espírito de perversidade, e reconhecendo que a pureza que pede em oração é criação de Deus.
O testemunho de Cristo a respeito deste ponto fica claro para todos aqueles que não fecham seus olhos deliberadamente: "Eu sou a videira; vós os ramos; meu Pai é o agricultor. Como não pode o ramo produzir fruto de si mesmo, se não permanecer na videira; assim nem vós o podeis dar, se não permanecerdes em mim." (Jo. 15:1, 4-5). Se não podemos produzir mais frutos por nós mesmos do que um ramo de videira arrancado do seu tronco e privado de seiva, então não precisamos ir mais longe em busca da nossa capacidade natural para o bem. Igualmente decisiva é a conclusão de Cristo: "Sem mim nada podeis fazer."
O apóstolo Paulo, numa passagem que já citei, atribui a Deus todas as boas obras: "porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade" (Fil. 2:13). A primeira parte de uma boa obra é a vontade de praticá-la; a segunda é um esforço eficaz para realizá-la; o autor de ambas é Deus. Portanto, furtamos a
Deus tudo quanto arrogamos a nós mesmos, seja com respeito ao querer ou ao fazer. Deus tanto inicia como completa. Vem da parte dEle que nossa vontade conceba o amor daquilo que é certo, seja inclinada a desejá-lo, e seja despertada para procurá-lo; que nossa escolha, nosso desejo e nosso esforço não fracassem, mas sim sejam realizados; que continuemos nas boas obras e perseveremos nelas até o fim.
Deus move a vontade do homem na conversão, de modo eficaz, não deixando à escolha do pecador se ele obedecerá ou desobedecerá. Devemos rejeitar, portanto, uma declaração de Crisóstomo, freqüentemente citada: "Aquele que é atraído por Deus é atraído voluntariamente", pela qual subentende que Deus espera com a mão estendida para ver se queremos aceitar Sua ajuda, ou não. O apóstolo não nos diz que a graça de uma vontade renovada nos é oferecida na condição de a aceitarmos, mas que a própria vontade é gerada por Deus em nós; ou seja, que o Senhor pelo Seu Espírito dirige, molda, regula nosso coração e reina nele como no Seu próprio reino.
Teria ficado igualmente certo que a perseverança deva ser considerada o dom gratuito de Deus, se não fosse a prevalência do erro grave de que a perseverança é a recompensa do mérito humano, e é dada àqueles que foram devidamente gratos pela graça recebida. Mas visto que este erro brotou de um outro que já refutei, a saber, que depende do homem aceitar ou rejeitar a graça que Deus oferece, o erro originador tendo sido refutado, o segundo cai por terra.
E agora, escutemos Agostinho. Suas palavras mostrarão que não somos, conforme alegam nossos adversários, contraditos pela voz unânime dos pais antigos. Farei um esboço breve da opinião de Agostinho, usando suas próprias palavras.
"Foi concedido a Adão ficar firme se fosse da sua vontade assim fazer; a nós é dado querer e a vencer o mal pela vontade. Ele teria o poder, se apenas tivesse a vontade; Deus nos dá tanto a vontade quanto o poder. Sua liberdade era esta: ser capaz de não pecar; a nossa é maior, a saber: não ser capaz de pecar (1 Jo. 3:9). Se naquela fraqueza, em que o poder de Deus se aperfeiçoa, os santos
fossem deixados a exercerem sua própria vontade, e se Deus não operasse neles para querer e para realizar, a vontade deles falharia devido à própria fraqueza em meio às suas muitas tentações, e não seriam capazes de perseverar. Deus atrai os homens pela própria vontade deles, mas Ele mesmo opera naquelas vontades."
Noutro lugar, Agostinho diz que a graça não priva o homem da sua vontade, e sim transforma-a de uma má vontade para uma boa vontade, e depois passa a assisti-la; com isso quer dizer que o homem não é forçado, por assim dizer, por algum impulso externo, e sim está tão afetado interiormente que obedece de coração. Diz também, numa das suas cartas: "Sabemos que a graça de Deus não é dada a todos os homens; e que, onde é dada, não o é na base dos méritos das obras do homem nem da vontade do homem, mas pela livre graça; e sabemos que onde não é dada, é retida pelo justo julgamento de Deus." E em certo lugar resume admiravelmente a questão inteira desta forma: "Humana voluntas non libertate gratiam, sed gratia consequitur libertatem, isto é, a vontade humana não obtém a graça mediante a liberdade, e sim a liberdade mediante a graça."