Alguns argumentam contra a escravidão humana e certas passagens são citadas nela, nas quais Deus repreende Seu povo ao dizer-lhe que foi inteiramente por sua própria culpa que não recebeu inumeráveis bênçãos da Sua mão indulgente. "Porque os amalequitas e os cananeus ali estão diante de vós, e caireis à espada; pois, uma vez que vos desviastes do Senhor, o Senhor não será convosco" (Num. 14:43). "Chamei-vos e não me respondestes, farei também a esta casa... como fiz a Silo" (Jer. 7:13-14).
Onde, perguntam, estaria a razão ou a força de tais repreensões, se o povo pudesse responder, "Não obedecemos ao Senhor porque nossa vontade não era livre para assim fazer"? Mas, pergunto, como poderiam desculpar-se desta maneira? Poderiam negar que a causa da obstinação do povo era sua própria vontade depravada? Foi correto que Deus assim o repreendesse, a fim de que, no meio das suas calamidades, aprendesse a culpar sua própria maldade ao invés de acusar a Deus por severidade injusta. E vemos na oração de Daniel (Dan. 9) que esta era realmente a situação dos piedosos.
Temos um exemplo oposto no caso dos judeus para os quais Jeremias foi enviado para explicar a causa das suas aflições: "Dir-lhes-ás, pois, todas estas palavras, mas não te darão ouvidos; chamá-los-ás, mas não te responderão" (7:27). Pode-se perguntar: qual é a utilidade de cantar aos surdos? Respondo: foi a fim de que fossem compelidos, mesmo contra sua vontade, á perceber que era blasfêmia culpar a Deus pelas aflições que a sua própria maldade trouxera sobre eles.
Há uma passagem na lei de Moisés que, à primeira vista, parece contradizer a explicação que demos desta dificuldade; ei-la: "Porque este mandamento, que hoje te ordeno, não é demasiado difícil, nem está longe de ti... Não está nos céus... Pois esta palavra está mui perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a cumprires" (Deut. 30:11-14). Se estas palavras fossem entendidas como sendo aplicáveis aos preceitos da lei, confesso que o argumento construído sobre elas por nossos adversários teria algum peso. Mas o apóstolo Paulo nos diz distintamente que Moisés aqui está falando da doutrina do evangelho (Rom. 10:8). Se qualquer opositor argumentar que Paulo torceu as palavras do seu significado verdadeiro para aplicá-las ao evangelho, eu posso limitar-me a dizer que a objeção é uma amostra de audácia ímpia.
Mas acrescentarei que, se Moisés falou estas palavras a respeito da lei, era culpado de insuflar o povo com vã confiança. Os filhos de Israel teriam corrido precipitadamente para a ruína se tivessem tentado guardar a lei pela sua própria força. Logo, é evidente que Moisés aqui se referia àquela aliança de misericórdia proclamada por ele em adição à lei das obras. Pois pouco antes dissera que nosso coração deve ser circuncidado pela mão de Deus a fim de que pudéssemos amá-IO. Portanto, a passagem citada acima não oferece nenhuma prova de que a vontade do homem está livre.
Nossos oponentes freqüentemente trazem contra nós aquelas partes das Escrituras onde se diz que Deus retira a assistência da Sua graça e prova os homens, esperando para ver qual o rumo que tomarão. Refiro-me a passagens tais como Oséias 5:15: "Irei e voltarei para o meu lugar, até que se reconheçam culpados e busquem a minha face." Tais expressões, dizem eles, seriam absurdas se a vontade do homem não estivesse perfeitamente livre para escolher entre o bem e o mal. Afirmo que o verdadeiro significado de tais palavras é este: "Visto que as advertências, as exortações e as repreensões são desperdiçadas com este povo rebelde, retirar-me-ei por algum tempo; conservar-me-ei quieto e os deixarei sofrer aflição. Verei se depois de calamidades continuadas por longo tempo, hão de lembrar-se de mim e buscar minha face."
Quando Deus fala em retirar-se, Ele quer dizer que a voz da profecia será silenciada; e quando fala em esperar para ver o que ós homens farão, quer dizer que ocultará Seu rosto e os provará por algum tempo com várias aflições. Assim faz para humilhar-nos; mas seríamos mais facilmente esmagados do que corrigidos pela adversidade, se Ele não nos inclinasse à obediência pela operação do Seu Espírito. Por meio destes procedimentos Deus nos constrange a reconhecer que não somos nada; conseqüentemente, tais passagens não fornecem nenhuma prova da liberdade da vontade.
Mas, dizem nossos adversários, nossas boas obras são referidas nas Escrituras como sendo nossas próprias; e como seria possível dizer que fazemos boas obras como nossas próprias, se Deus meramente agisse conosco assim como uma pedra é manipulada por aquele que a joga? Esta comparação está totalmente fora do assunto. Quem é tão estulto que pensa que o movimento de um homem em nada difere do movimento de uma pedra?
Nenhuma inferência deste tipo pode ser tirada das nossas doutrinas, reconhecemos que o homem tem por natureza o poder para aprovar, rejeitar, estar disposto, não querer, esforçar-se, resistir; ele pode aprovar a vaidade, rejeitar o verdadeiro bem, estar disposto a fazer o mal, estar indisposto para fazer o bem, esforçar-se para cometer o mal, resistir a justiça. Se, pois, Deus deseja usar tal pessoa como instrumento da Sua ira, e exercer Seu direito soberano sobre as ações do pecador para cumprir Seus próprios propósitos retos, deveríamos então comparar o pecador com uma pedra, movimentada apenas por um impulso externo? Será que ele não segue seus caminhos malignos deliberada e voluntariamente? Reconhecemos, juntamente com Agostinho, que a vontade não é destruída pela graça, e sim renovada. Por isso é dito corretamente que fazemos aquilo que o Espírito de Deus opera em nós.
Alguns ensinadores do livre-arbítrio até citam, como apoio para eles, as palavras de Paulo: "Assim, pois, não depende de quem quer, ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia" (Rom. 9:16). Argumentam que estas palavras mostram que há uma coisa tal como o desejar e o esforçar-se que, quando for assistida pela misericórdia de Deus, torna-se eficaz. Paulo, porém, ali demonstra que a salvação é para aqueles aos quais Deus Se digna outorgar Sua misericórdia, e que a ruína e a destruição aguardam aqueles que Ele não escolheu. De modo semelhante o apóstolo escreve a Tito: "Quando, porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor pa¬ra com os homens, não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou" (Tit. 3:4-5).
Preciso examinar mais um argumento que é freqüentemente proposto pelos escritores que sustentam a liberdade da vontade do homem. Gostam muito de citar a parábola do homem que caiu entre salteadores e foi por eles deixado semimorto. Consideram que esta é uma representação alegórica do estado da humanidade; e posto que é dito que o homem ficou "semimorto", não perdeu inteiramente a sua justiça e força originais. Em primeiro lugar, nego que a parábola tem qualquer significado alegórico desta natureza. Mas mesmo que tivesse, o que provaria? O homem está semimorto; portanto não perdeu tudo. Ele possui mente com poderes intelectuais, embora não possa subir à altura da sabedoria celestial e espiritual; tem algum senso de decência; tem alguma percepção da existência de Deus, embora não possa chegar a um conhecimento correto dEle. No que se resume tudo isto? Simplesmente não prova ser falsa a declaração de Agostinho, de que o homem perdeu pela queda aquelas faculdades graciosas das quais depende a salvação, e que as faculdades naturais que reteve foram corrompidas e poluídas.
Firmemo-nos nisto, portanto, como verdade que nenhuma artimanha de argumento pode derrubar; que a mente do homem está tão completamente alienada da justiça de Deus que nada concebe, nada deseja, nada ambiciona, senão o que é ímpio, depravado, vergonhoso, impuro e vicioso; e que o coração está tão completamente permeado com o veneno do pecado, que suas exalações são corruptas tanto quanto aquelas de um sepulcro aberto. Se os homens, às vezes, exibem uma aparência externa de virtude, a mente sempre permanece maculada com a hipocrisia, e todos os seus poderes estão presos à escravidão da perversidade.