Paulo falou dos gentios como pessoas condenáveis aos olhos de Deus (1.18—2.16); ele falou dos judeus gentios como pessoas condenáveis aos olhos de Deus (2.17—3.8). Agora ele reúne ambos para mostrar que todas as pessoas de todos os lugares encontram-se na mesma condição diante de Deus:
Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado. (3.9)
Paulo equiparar judeus e gentios dos seus tempos pode ser equivalente a equiparar cristãos professos e ateus hoje em dia. E quando eu comento esta passagem com as pessoas, elas muitas vezes perguntam: "O que você quer dizer com isso? Você está dizendo que um membro de uma igreja cristã é tão culpado aos olhos de Deus quanto aquele horrível comunista ou ateu ali?" E Deus está dizendo através de Paulo "Sim, ele é!".
Podemos ficar tão irritados, e com justa indignação, com as pessoas que abertamente negam a existência de Deus. Não é difícil para nós concordarmos que eles precisam desesperadamente de salvação e nos consideramos extremamente virtuosos por reconhecer o pecado deles. Mas quando Paulo se vira para nós e diz que, aos olhos de Deus, nós também precisamos de salvação, então a nossa reação emocional é totalmente diferente. Certamente seria forte a reação dos judeus que leram Paulo contra a afirmação de que os judeus não são em nada melhores do que os gentios aos olhos de Deus. Paulo, prevendo essa reação forte, põe um ponto final no assunto, citando um trecho da sua própria Bíblia, o Antigo Testamento.
Como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer. (3.10-12)
Não é Paulo que diz serem todos os seres humanos pecadores. Citando os Salmos 14.1-3 e 53.1-3, ele mostra que o Antigo Testamento, a Bíblia dos seus leitores judeus, diz a mesma coisa. E como vimos anteriormente, Isaías também o diz: "Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos" (Is 53.6). A pessoa sem a Bíblia não seguiu totalmente seus próprios princípios e merece, assim, a ira de Deus. Mas aqueles de nós, que têm a Bíblia, a qual estabelece padrões morais ainda mais altos, também não foram capazes de seguir esses princípios. Não é uma abstração teológica vinda de algum estado de espírito metafísico. A corrupção moral é conseqüência de desejos imorais individuais. Paulo descreve uma tragédia concreta a respeito de desejos pecaminosos, e não um estado ou conceito humano.
Esta concepção da universalidade do pecado é o maior e mais genuíno "nivelador" da humanidade. Jesus a enfatizou mais de uma vez. Toda vez que as pessoas apontavam para alguém, dizendo "olhe só aquele pecador", Jesus sempre deixava claro que todas as pessoas são igualmente pecadoras. Diante de Deus, todas estão no mesmo nível.
Essas palavras de Paulo são bastante concretas, e também são bem pessoais. Nós já vimos este seu estilo muito pessoal antes, quando ele dizia "Por isso és indesculpável, ó homem" (2.1). E as suas colocações em 3.10-12 não são menos pessoais. Pois, se "não há justo", então eu não sou justo; se "não há quem entenda... ninguém que busque a Deus" da forma pela qual se deve buscar a Deus, então eu não entendo e não busco a Deus, da forma como deveria. Se "todos se extraviaram", então isto inclui a mim - eu me desviei do caminho. Se não há absolutamente quem faça o bem, "nem um sequer", então eu também não faço bem algum. Se todos os humanos são sem exceção moralmente corruptos, então eu também sou moralmente corrupto, não interessa quanto eu me considere bom.
Mesmo aqueles de nós que aceitamos Cristo como Salvador não deveríamos jamais pensar no pecado como uma abstração. Todas as pessoas são moralmente corruptas. Nenhum de.nós está em condições de imaginar o pecado do ponto de vista dos outros. Como vimos em Efésios, todos nós já fomos "por natureza Filhos da ira" (Ef 2.3) algum dia. É neste lugar que cada um de nós tem vivido. Este é o abismo que estivemos cavando. É isso que nós somos.
Os cristãos muitas vezes comentam o quanto ficaram "chocados" por terem observado este ou aquele comportamento. Nós nunca deveríamos hesitar em denunciar algo quando está errado. Mas como podemos ficar "chocados" ou surpresos com os pecados dos outros, se nós mesmos somos igualmente corruptos aos olhos de Deus Se realmente entendemos o quanto todos nós somos pecaminosos aos olhos de Deus, então estaremos em condições de compreender que estamos no mesmo nível que o resto das pessoas. Do ponto de vista da nossa natureza pecaminosa, estamos todos reduzidos às mesmas proporções.
Paulo fez desta questão da pecaminosidade humana algo pessoal, incluindo-se na discussão. Ele não estava dizendo "Serão os judeus melhores que os gentios?" Ele estava dizendo "Será que somos melhores do que eles?" (3.9). Ele se identifica a si mesmo com os seus companheiros judeus. "Seria eu, seríamos nós melhores do que eles?" pergunta ele. E a resposta é: "Não. Nós, inclusive eu, não somos melhores do que eles".
A citação que Paulo faz do Antigo Testamento certamente teria ar-rasado os seus leitores judeus - e, por extensão, também os leitores cristãos de hoje. Como alguém pode sentir que está em numa posição confortável diante do Deus santo, só pelo fato de ter uma Bíblia, se a Bíblia mesmo diz que ninguém é justo? Todo aquele que tentar se autojustificar acabará levando só pedradas depois do versículo 12. Nin¬guém está a salvo só porque se escondeu debaixo das asas protetoras do Judaísmo - ninguém está a salvo só por estar debaixo das mesmas asas do Cristianismo. Ninguém é justo, "nem um sequer".
Será que isto significa que estamos todos além da esperança? Se todos somos assim tão moralmente corruptos aos olhos de Deus, será que resta alguma esperança para nós? Lembre-se de que neste ponto, em sua carta aos Romanos, Paulo ainda está pregando "a primeira metade do evange¬lho"; ele continua tentando mostrar que todas as pessoas necessitam de salvação. Não se esqueça do pressuposto disso tudo: "não me envergo¬nho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação" (1.16).
"Mas por que eu preciso de salvação?"
"Porque você está sob a ira de Deus."
"E por que eu estou sob ira de Deus?"
Paulo está respondendo a esta questão na primeira metade do seu comentário ao evangelho (1.18—3.20), e ele prossegue em 3.13, traçando um quadro assustador da raça humana.
A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua urdem engano, veneno de víbora está nos seus lábios, a boca eles a têm cheia de maldição e de amargura; são os seus pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos há destruição e miséria; desconheceram o caminho da paz. Não há temor de Deus diante de seus olhos. (3.13-18)
Que terrível quadro Paulo está apresentando da raça humana dos seus próprios dias. E poderíamos supor que a humanidade de hoje es¬teja de alguma maneira melhor? Será que a humanidade "progrediu" em termos de moralidade - como tantos querem nos fazer acreditar7 A Palavra de Deus certamente diria "Não, nem um sequer!" Podemos até estar progredindo em certo sentido, mas não quanto à nossa postura moral diante de Deus. Não devemos ousar tratar o assustador quadro de Paulo como se fosse uma abstração qualquer. É assim que nós, humanos, somos, e é assim que um Deus santo nos vê.
Ora, sabemos que tudo o que a lei diz aos que vivem na lei o diz, para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado, (3.19-20)
Paulo está agora partindo para a conclusão do seu discurso con¬tra os judeus; mas, da mesma forma como ele tem feito desde o versículo 9, ele vai progressivamente estendendo sua análise para incluir toda a humanidade. Uma vez que nem um sequer, não impor-ta se judeu ou gentio, está guardando a lei de forma perfeita, a única conclusão possível é que toda a humanidade apresenta-se culpada diante de Deus e sujeita ao um devido julgamento. "Visto que... por obras da lei..." Paulo está se referindo não apenas à Lei de Moisés, mas a boas obras de qualquer tipo: "visto que ninguém será justificado diante dele por [boas] obras da lei". O sentido do grego original é ainda mais forte: "Nenhuma carne jamais será... nenhuma carne pode-
rá jamais ser justificada". Todos aqueles que não têm a Bíblia serão julgados de acordo com o padrão perfeito de Deus, com base no juízo que cada um faz dos outros, como vimos em 2.1. Ninguém jamais poderá dizer "segui completamente o padrão, de acordo com o qual eu julguei os outros". E, em seguida, vem o judeu e diz "está certo, acontece que nós temos a Bíblia". E Deus responde: "É verdade, mas também é verdade que você não a seguiu". Portanto, a conclusão a que chegamos é que a nossa situação é simplesmente caótica. "Visto que ninguém [jamais] será justificado diante dele [de Deus] por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado".
Chegamos assim ao final da apresentação de Paulo da "primeira metade do evangelho". Ele levou a maior parte do primeiro capítulo, todo o segundo capítulo e grande parte do terceiro capítulo para nos mostrar que precisamos da salvação. O que ele ainda não nos con¬tou foi como ser salvo. A palavra salvação ocorreu somente uma vez, em um dos versículos-chave: "Pois não me envergonho do evange-lho, porque é o poder de Deus para a salvação" (1.16). Quer seja no mundo grego e romano humanista, quer no humanismo do século 20, por toda parte ouvimos a mesma queixa: "Por que eu preciso de salvação?" As pessoas podem até ter todo o tipo de opiniões sobre se Deus existe ou como ele é se ele realmente existir, mas quando elas ouvem falar que Deus diz que devem ser salvas, elas geralmente têm objeções.
É interessante notar que as pessoas não rejeitam o Existencialismo . da mesma forma como rejeitam o Cristianismo. O existencialista diz que todas as pessoas estão perdidas. O existencialista diz que todas as pessoas estão condenadas. O existencialista diz que não há esperança alguma. Cínicos e niilistas de todos os tipos dizem que não há esperança na vida, a vida é complicada, a vida é impossível, o homem é um zero à esquerda. E é aí que o Cristianismo difere radicalmente do Existencialismo e eis porque as pessoas têm uma reação assim tão forte contra o Cristianismo, mas não contra o Existencialismo. O Existencialismo diz que o homem é um zero à esquerda e que está irremediavelmente perdido. Já o Cristianismo diz que o homem está perdido sim, não pelo que ele é, mas devido à forma pela qual ele resolveu agir, por livre e espontânea vontade. Se um homem é condenado pelo que ele é, você não poderia dizer que ele está errado - ele é apenas patético. Mas o Cristianismo diz que o homem não ê patético. Na verdade, o homem é uma maravilhosa criação de Deus. Acontece que ele Lambem é um-ser rebelado contra' Deus e merece a ira de Deus. O homem não é um ser patético, o homem é um ser rebelde. Não é como se o homem estivesse desesperadamente preso em uma rede da qual não tivesse como escapar; ele está preso numa rede, certo, mas ele está lá por opção própria. E se homens e mulhe-res estão presos nesta rede por escolha própria, diz a Bíblia, então há algo mais em jogo: eles precisam aceitar a responsabilidade, a culpa por estar ali.