Em Romanos Paulo faz
uma pergunta retórica: "Que diremos pois? Há injustiça com [em]
Deus?" Novamente perguntamos por que Paulo fez essa pergunta. Ele era um
professor, um mestre por excelência. Ele antecipava objeções que poderiam ser
levantadas por seu ensino, e ele tratava delas assumidamente. Que objeção ele
tem em vista quando levanta a questão de injustiça em Deus?
Primeiro consideramos a
visão presciente da eleição. Que objeções levantadas contra ela incluem o
ataque que há injustiça em Deus? Nenhuma. A visão condicional da eleição é
proposta para proteger duas fronteiras: de um lado, uma visão particular de
liberdade humana, e do outro uma visão específica de Deus. Buscam proteger Deus
da acusação de que ele é parcial, arbitrário ou injusto, escolhendo algumas
pessoas para salvação sem levar em conta suas próprias escolhas. Em resumo,
oposição a visões arminianas ou semipelagianas de eleição não inclui a acusação
de que isso coloca em dúvida a justiça de Deus. Se Paulo estivesse expondo a
visão presciente, dificilmente esperaríamos que ele levantasse uma objeção
desse tipo.
A objeção que Paulo
chega a antecipar é uma que calvinistas ouvem constantemente: a doutrina
calvinista de eleição lança uma sombra sobre a justiça de Deus. A reclamação
forte e frequente é que a eleição incondicional envolve Deus numa espécie de
injustiça. Minha suposição é que Paulo antecipou a própria objeção levantada
que calvinistas ouvem porque ele ensinou a mesma doutrina de eleição que
calvinistas ensinam. Quando
nossa doutrina de
eleição é atacada, eu me consolo que estamos em boa companhia, a do próprio
Paulo, quando precisamos suportar as objeções capciosas daqueles que fazem
oposição à eleição incondicional.
A idéia de que pode
haver injustiça em Deus é relacionada ao fato de Deus escolher alguns para
salvação enquanto passa por cima de outros. Não parece justo nem
"direito" Deus conferir sua graça em alguns mas não em outros. Se a
decisão de abençoar Jacó e não Esaú foi feita antes de um dos dois nascer ou
ter feito algo de bem ou mal, e se a escolha não foi com vistas a suas ações ou
reações futuras, então a pergunta óbvia é: Por que um recebeu a bênção e não o
outro?" Paulo responde isso apelando a palavras de Deus a Moisés: "Eu
terei misericórdia de quem eu terei misericórdia". É prerrogativa de Deus
dispensar sua graça conforme ele acha por bem. Ele não ficou devendo nem a Jacó
nem a Esaú qualquer medida de graça. Se não tivesse escolhido um dos dois, ele
não teria violado nenhum preceito de justiça ou retidão.
Ainda parece que se
Deus dá graça a uma pessoa, no interesse de justiça ele "deveria" dar
graça igualmente para outra. É precisamente esse "dever" que é
estranho ao conceito bíblico de graça. Entre a massa de humanidade decaída,
todos culpados de pecado diante de Deus e expostos à sua justiça, nenhum tem
qualquer reivindicação ou autorização à misericórdia de Deus. Se Deus escolhe
conceder misericórdia a alguém daquele grupo, isso não requer que ele dê isso a
todos.
Deus certamente tem
poder e autoridade de conceder sua graça salvadora a toda a humanidade. É óbvio
que ele não optou fazer isso. Os homens não são todos salvos, apesar do fato
que Deus tem o poder e o direito de salvá-los todos se esse é seu bel-prazer.
Também está claro que nem todos são perdidos. Deus poderia ter escolhido não
salvar ninguém. Ele tem o poder e a autoridade de executar sua reta justiça não
salvando ninguém. Na realidade ele opta por salvar alguns, mas não todos.
Aqueles que são salvos são beneficiários de sua soberana graça e misericórdia.
Aqueles que não são salvos não são vítimas de crueldade ou injustiça; eles são
recebedores de justiça. Ninguém recebe castigo às mãos de Deus que não mereça.
Alguns recebem graça das mãos de Deus que não merecem. Por ele se agradar tanto
em conceder misericórdia a alguém não significa que os demais
"merecem" o mesmo. Se a misericórdia é merecida, ela não é
misericórdia realmente, e sim justiça.
A história bíblica
deixa claro que embora Deus nunca seja injusto a ninguém, ele não trata todas
as pessoas igualmente ou de um mesmo modo. Por exemplo, Deus, em sua graça,
chamou Abraão para sair de seu paganismo em Ur dos caldeus e fez um pacto
gracioso com ele que não fez com outros pagãos. Deus se revelou a Moisés de uma
maneira que não concedeu a faraó. Deus deu a Saulo de Tarso uma revelação
bendita da majestade de Cristo que não deu a Pilatos ou Caifás. Por Deus ser
tão gracioso a Paulo quando ele foi um perseguidor violento de cristãos, será
que por isso ele era obrigado a dar a mesma vantagem revelatória a Pilatos?
Ou houve uma qualidade
virtuosa especial em Saulo que inclinou Deus a escolhê-lo acima de Pilatos?
Poderíamos saltar por cima dos séculos para nosso próprio tempo com uma pergunta
similar. Nós, crentes, precisamos perguntar por que chegamos à fé enquanto que
muitos de nossos amigos não chegaram. Será que exercemos fé em Cristo porque
somos mais inteligentes do que aqueles outros? Se é assim, de onde veio essa
inteligência? É algo que fizemos por merecer? Ou foi a nossa própria inteligência
uma dádiva de nosso Criador? Nós respondemos positivamente ao evangelho porque
somos melhores ou mais virtuosos do que nossos amigos?
Todos nós sabemos as
respostas a essas perguntas. Eu não posso explicar adequadamente por que
cheguei à fé em Cristo e alguns de meus amigos não. Só posso olhar para a
glória da graça de Deus para comigo, uma graça que eu não mereci na ocasião e
não mereço agora. Aqui uma e outra coisa se reuniram, e nós descobrimos se estamos
abrigando um orgulho secreto, crendo que merecemos salvação mais do que outros.
Eis aí um grande insulto à graça de Deus e um monumento à nossa própria
arrogância. É uma inversão à pior forma que há de legalismo, pela qual nós, no
fim, colocamos nossa confiança em nosso próprio acionamento.