A essência do pecado é “Brincar
de Deus” – viver não para Deus, mas para si mesmo, vendo Deus
como parte do todo no qual estamos no centro e para qual mesmo Deus se
inclina. O mundo está mergulhado em auto-absorção.
Que imagem é essa senão
a do diabo, já que seu pecado, orgulho auto-exaltado, foi o pecado dele muita
antes de existirmos? Qual é o espírito do culto de nosso geração? Em torno do
que ele está? O grande pecado pregado hoje, espelhando nosso mundo, não é a
falha de em tudo honrar a Deus e lhe ser grato em todas as circunstâncias da
vida, mas a falta de estima por si mesmo.
A geração que “cultua”
a Deus em nossos dias ( cultua a si
mesma) achando que a ideia de auto-humilhação
(Lc 9.23, 1Pe 5.6) é um mal supremo, prefere então não se ofender com a atitude oposta, o que podemos chamar de Deus-humilhação, ou seja, o
rebaixamento de Deus em favor do ego e estima humana. É de novo e de novo cair
da tentação do Éden de “ser como Deus”
(Gn 3.5). Um culto que repudia a auto-humilhação e nossa indignidade, expressa
a mente descrita por Paulo em Romanos 8.7: “o pendor da carne é inimizade contra Deus” – é o
retrato da mente do homem não regenerado. Esse pendor manifesta o profundo
descontentamento do coração humano com o governo de Deus, ressentimento contra
suas reivindicações e hostilidade para com a Sua Palavra. De tal forma isso se
tornou comum que é só a Palavra ser proclamada que logo vozes se levantam: “mas isso é muito duro...” – Por causa disso o
grito de libertação de nossos dias – ecoando o mundo, não é mais, “miserável homem
que sou... quem me livrará...” – mas: “Que homem digno eu sou, quem me ajudará a ver melhor a minha
dignidade?”
E onde entram as águas
de Kheled-zâram nisso tudo? Na obra
de Tolkien, O Senhor dos Anéis, já
perto do fim da primeira parte – A
Sociedade do Anel – depois que a companhia atravessa as perigosas minas de
Moria, com muito custo chegam do outro
lado, tendo “perdido” Gandalf na
atravessia, o grupo está arrasado. Há um grande lamento, Gandalf é o líder...
como ficarão sem ele? Há grande sofrimento e incredulidade, ele era o mais
poderoso entre eles.
No meio desse grande
lamento por Gandalf e ainda temendo por suas vidas, Gimli ( o representante dos anões na sociedade ), insiste para que Frodo ( o portador do Anel ) e o inseparável
amigo, Sam, se juntem a ele enquanto olha as águas de Kheled-zâram.
A principal maravilha
do Lago-espelho é que ele reflete apenas as montanhas e as estrelas: “Das sombras dos
próprios corpos inclinados não se via nada” – Ele tira, em seu
reflexo, a pessoa do centro, ela não se vê, ela pode ver tudo sem ter ela no
centro, sem ter ela como perspectiva central da cena. Ela então pode ver coisas
que jamais poderia ver com ela no centro. Coisas fundamentais que parecem periféricas
quando vistas ao redor apenas. Coisas maiores que nossas alegrias, triunfos ou
tragédias aqui. Coisas que sobreviverão quando nenhum de nós estiver mais neste
planeta. ( Ver coisas que durarão para sempre, como diz Paulo).
Não é essa nossa grande
necessidade? As “águas de Kheled-zâram”, o lago espelho que nos tira totalmente
da perspectiva central nas alegrias, triunfos e tragédias, e nos faz enxergar
coisas eternas?
Sem a libertação da
grande característica do pecado que os Reformadores chamaram de homo incurvatus in si, estamos presos em
nossos egos, em auto-absorção, e todo culto, e todo nosso cristianismo não
passa de farsa, pois ainda estamos brincando de deus.
Hoje, o primeiro grande
mandamento de nossa geração, o primeiro mandamento que tem moldado nosso cultos
é “amarás a ti
mesmo” – explicamos todos os problemas com base na baixa
auto-estima. Não gostamos de nada na Palavra de Deus que julguemos que
provocará isso. Décadas de sermões, livros... inculcando isso na mente de uma
geração fez um estrago enorme. Temos de fato o culto do Eu. O culto para o mundo, o culto relevante, o culto para
o jovem, o culto para os casamentos, o culto...
O foco é o homem e não Deus, e sequer nos envergonhamos mais de tão
grande distorção. Não há oposição quase nenhuma a tão grande afronta a Deus.
Não cultuamos Deus, cultuamos nossa auto-estima.
A atitude corrente é a
de autodeificação, dela só poderia brotar atos de autodeterminação contra Deus,
Sua Palavra... tendo que o que é eterno e imutável, se “moldar” ao que é
mortal, finito e mutável. Já não conseguimos olhar mais nada sem ver nossa face
no centro da perspectiva. Era exatamente isso que as águas de “Kheled-zâram”, o
lago espelho, fazia, tirava o homem da perspectiva.
Sem esse “milagre” de Kheled-zâram,
o homem não pode sequer esbarrar nas doutrinas fundamentais sobre ele, pois,
por não estarem indo na direção do culto a auto-estima, serão descartadas como
absurdas, não porque a Bíblia não as ensina, mas porque ofende a sensibilidade
do ego adorado. Por exemplo, todo homem além do trabalho regenerador de Deus é
totalmente depravado, ou seja, ele não é capaz de nenhum ato ou pensamento
sagrado, santo, aceitável... diante de Deus. Paulo diz que “tudo que não é por fé é pecado” (Romanos 14.23) – Portanto, tudo que um homem irregenerado faz é
pecado, mesmo que ele dê todos os seus bens para alimentar o pobre ou o seu
corpo para ser queimado (1 Coríntios
13.3) – O motivo verdadeiro para qualquer ato só pode ser definido
devidamente com referência a honra de Deus, sua santidade, sujeição a Ele, sua honra... qualquer coisa
feita sem essa referência e que não confia tão somente em sua misericórdia e em
nada de bom no homem, não são boas, portanto: "Não
há ninguém que faça o bem nem um sequer" - Romanos 3:12. É óbvio que isso é uma
pedra de tropeço intransponível para o coração irregenerado.
Vida cristã é uma vida
que consiste em seguir a Jesus, e segui-lo está no estremo oposto ao culto da
auto-estima: “Se alguém quiser vir após
mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!” – Hoje vivemos numa
geração que quer seguir a Cristo com muito do mundo e de si mesmo, e muito pouco
de Cristo em suas vidas, porque culto a
auto-estima e cruz são antagônicos.
Ele diz que primeiro
negue-se e só depois siga-me.
Primeiro – Renuncie a
si mesmo.
Segundo – Tome a sua
cruz.
Terceiro – Siga-me.
Essa é a ordem das
coisas. Mas o Ego está no caminho juntamente com o mundo e suas milhares de
atrações. O culto a auto-estima e o “para
mim o viver é Cristo... e não mais vivo eu mais Cristo vive em mim”, são
incompatíveis. O que Paulo está dizendo é que “para mim o viver é obedecer a
Cristo, é servir a Cristo, é honrar a Cristo...” – é isso que
significa. Tomar a cruz significa obediência, consagração, rendição... uma vida
colocada à disposição de Deus para Sua glória – significa morrer para o Ego. “Segundo a minha intensa expectação e
esperança, de que em nada serei confundido; antes, com toda confiança, Cristo
será, tanto agora como sempre, engrandecido no meu corpo, seja pela vida, seja
pela morte” – Filipenses 1.20 – Fomos mandados para o mundo para
viver com a cruz estampada em nós, não há outra forma para que de fato a vida
de Cristo seja mostrada em nós: “Trazendo
sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus também seja
revelada em nosso corpo” – 2 Coríntios
4.10.
Tudo isso é fábula sem
as “águas de Kheled-zâram”, ou seja,
sermos levados a uma visão da vida em que não estamos mais no centro, podendo
ver então tudo que é eterno, tudo que em nossos triunfos e tragédias aqui,
glorifiquem a Deus: “Não atentando nós nas coisas que se vêem, mas
nas que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que se não vêem
são eternas.” 2 Coríntios
4:18 – Ele não põe ele mesmo no centro da perspectiva, mas o plano eterno
de Deus – ao não estar centrado em si, tudo que era eterno tomava um lugar que
não podia ser visto antes. Era o que as águas de Kheled-zâram faziam.
Nós
não desanimamos porque os nossos olhos estão fixos no que é invisível e eterno.
Podíamos ver tantos
exemplos na vida de Paulo, mas encerremos com um apenas. Paulo podia ver as
correntes que o prendiam aos soldados romanos dia e noite. Mas seus olhos não
estavam sobre elas e eles. Cada corrente foi forjada por Cristo e seria usada
para Cristo. Se o ego estivesse no centro da perspectiva, isso seria
impensável, mas Paulo pensava: “como
posso usar essa cela de prisão e essas correntes para a glória de Cristo? Como
honrar aqui, nesta situação o Senhor do Céu!”
Ele nunca fez das
coisas deste mundo o alvo do seu olhar, ele podia ver longe, ele não se via no
centro da perspectiva. Se ele fosse adepto do culto da auto-estima de nossa
geração, teria ficado oprimido ali, paralisado por sua própria mortalidade,
obcecado pelos triunfos aparentes dos inimigos, ou desestabilizado pelo pequeno
apoio das igrejas. Mas ao não se ver no centro da perspectiva, ele pode fixar os
olhos sobre o que era invisível.
Como dissemos antes, a
principal maravilha do Lago-espelho, Kheled-zâram
- era que refletia tudo, a obra das
mãos de Deus, sem mostrar a face de quem estava olhando: “Das
sombras dos próprios corpos inclinados não se via nada!” –
Naquele momento de tragédia e dor, onde parecia que tudo iria perecer, não
havia lugar melhor para Frodo e Sam olhar, e foi isso que Gimli os incentivou
fazer.