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    DEUS É SOBERANO - JOÃO CALVINO



    NÃO É PROCEDENTE INCRIMINAR A DEUS PELO FATO DE FAZER USO DOS
    ÍMPIOS PARA SEUS PROPÓSITOS MAGNOS -


    Desta maneira se resolve, ou, melhor, por si mesma se dissolve também outra objeção: Se Deus não só se serve da operação dos ímpios, mas inclusive lhes governa os desígnios e intenções, é ele o autor de todas as impiedades e, conseqüentemente, os homens são imerecidamente condenados, se estão a executar o que Deus decretou, uma vez que estão a obedecer-lhe à vontade.
    Ora, erroneamente, eles confundem sua vontade com seu preceito, a qual de inúmeros exemplos transparece diferir dele desmedidamente. Pois, visto que, enquanto Absalão violou as concubinas do pai [2Sm 16.22], Deus quis com esse ato infamante punir o adultério de Davi, entretanto nem por isso preceituou ao filho celerado cometer o incesto, senão que o preceituou talvez com respeito a Davi, como este mesmo fala acerca das insultuosas acusações de Simei. Pois, enquanto confessa [2Sm 16.10] que aquele amaldiçoava por injunção de Deus, de modo algum lhe recomenda a obediência, como se aquele cão insolente estivesse obedecendo ao imperativo de Deus, mas, reconhecendo que a língua era o azorrague de Deus, se deixa pacientemente castigar.
    Isto nos cabe realmente sustentar: enquanto por instrumentalidade dos ímpios Deus leva a bom termo o que decretou em seu juízo secreto, não são eles escusáveis, como se estivessem obedecendo a seu preceito, o qual deliberadamente violam em sua desregrada cupidez. Ora, visto que procede de Deus, e é regido por sua providência secreta o que os homens perversamente fazem, exemplo luminoso é a escolha do rei Jeroboão [1Rs 12.20], na qual se condena severamente a temeridade e insânia do povo, porque havia pervertido uma ordem sancionada por Deus e perfidamente se afastara da casa de Davi; e no entanto sabemos que Deus quisera que Jeroboão fosse ungido. Do quê se mostra também certa aparência de contradição nas palavras de Oséias, porquanto onde Deus se queixou [Os 8.4] de que aquele reino havia sido estabelecido sem seu conhecimento e contra sua vontade, em outro lugar [Os 13.11] proclama que, em sua ira, o havia dado ao rei Jeroboão.
    Como se harmonizarão estas afirmações: que Jeroboão não havia reinado da parte de Deus; e, por outro lado, que havia sido constituído rei pelo mesmo Deus?
    Obviamente, visto que o povo não pode apartar-se da casa de Davi sem alijar o jugo a si divinamente imposto, nem tampouco ao próprio Deus foi destruída a liberdade de assim punir a perfídia; contudo, em virtude de outro propósito, quer com justiça a defecção. Do quê também Jeroboão, além da expectativa, é impelido ao reino pela sagrada unção. Por esta razão, diz a história sagrada [1Rs 12.15] que foi suscitado por Deus um inimigo que despojasse o filho de Salomão de parte do reino.
    Ponderem os leitores, diligentemente, a ambos os aspectos: porque aprouvera a Deus que o povo fosse governado sob a mão de um só rei, quando o reino se cinde em duas partes, isto acontece contra sua vontade, e todavia da vontade do mesmo Deus foi o princípio da separação. Ora, certamente que o Profeta, assim pela palavra como pelo sinal da unção, a Jeroboão, que nada disso estava a cogitar, incita à esperança do reino. Isto, entretanto, não se faz, seja sem o conhecimento, seja contra a vontade de Deus, que assim determinou se fizesse; e contudo de direito é condenada a rebelião do povo, já que, como Deus fosse contrário, se apartara dos descendentes de Davi.
    Por esta razão, também acrescenta-se depois que Roboão desprezou altivamente as solicitações do povo: isto foi feito por Deus para que se confirmasse a palavra que havia proferido por intermédio de Abias, seu servo [1Rs 12.15]. Eis como, contra a vontade de Deus, se rompe a sagrada unidade; e, não obstante, como, por sua vontade, as dez tribos se alienam do filho de Salomão. Adicione-se ainda um outro exemplo similar: quando, anuindo o povo, ou, melhor, emprestando as mãos,
    são degolados os filhos do rei Acabe e exterminada toda sua descendência [2Rs 10.7]. Certamente com verdade refere Jeú nada haver caído por terra das palavras de Deus; ao contrário, pessoalmente fez ele tudo quanto falara por intermédio de seu servo Elias [2Rs 10.10]. E todavia, não sem causa, Jeú reprova aos cidadãos de Samaria que tivessem emprestado seu concurso: “Sois vós, porventura, justos?”, diz ele. “Se, pois, eu conspirei contra meu senhor, quem matou a todos estes?” [2Rs 10.9].
    A não ser que esteja enganado, já antes expliquei claramente como, em um mesmo ato, tanto se manifesta o delito do homem, quanto refulge a justiça de Deus. E aos espíritos comedidos será sempre suficiente esta resposta de Agostinho: “Uma vez que o Pai haja entregado o Filho, e Cristo seu corpo, e Judas o Senhor, por que nesta entrega Deus é justo e o homem réu, senão porque, em um e o mesmo ato que praticaram, a causa em função da qual o praticaram não é uma e única?”
    Mas se alguns se sentem mais embaraçados com o que ora dizemos, ou, seja, que em Deus não há nenhum consenso com o homem, onde este, pelo justo impulso daquele, faz o que não lhe é de direito, que os socorra o que em outro lugar adverte o mesmo Agostinho: “Quem todo não trema ante esses juízos em que Deus opera até mesmo no coração dos maus tudo quanto lhe apraz, contudo dando-lhes de conformidade com seus merecimentos?” E certamente que, na traição de Judas, atribuir a Deus a culpa do ato nefando, visto que ele próprio não só quis que o Filho fosse
    entregue, como inclusive o entregou à morte, em nada será mais lícito que transferir a Judas o louvor da redenção. E assim o mesmo escritor pondera, com muito acerto, em outro lugar, que neste exame Deus não indaga o que os homens têm podido, ou o que têm feito, porém o que têm querido, de sorte que o que se leva em conta é o propósito e a vontade.
    Ponderem, por uns poucos instantes, aqueles para quem isso é por demais áspero, quão tolerável lhes é a impertinência, quando, porque lhes excede à compreensão, rejeitam matéria atestada por claros testemunhos da Escritura e acusam de vício que essas coisas sejam trazidas a público, as quais, a não ser que houvesse reconhecido serem proveitosas para se conhecer, Deus jamais haveria ordenado que fossem ensinadas através de seus profetas e apóstolos. Ora, nosso saber não deve ser outra coisa senão abraçar com branda docilidade, e certamente sem restrição, tudo quanto foi ensinado nas Sagradas Escrituras. Os que, porém, invectivam mais insolentemente, quando se evidencia sobejamente estarem eles a vociferar contra Deus, não são dignos de refutação mais extensa.

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