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    Natureza dos anjos bons e dos maus - Agostinho (354 - 430)



    - (A Cidade de Deus ) - 
    1. Antes de falar da criação do homem, época em que as duas cidades, consideradas nos seres racionais mortais, começam a surgir (o livro precedente já assinalou essa origem nos anjos), resta-me dizer ainda algumas palavras a respeito dos próprios anjos, a fim de estabelecer, tanto quanto me for possível, que não há inconveniência nem incompatibilidade entre a sociedade dos homens e a dos anjos e, assim, que não existem realmente quatro cidades ou sociedades, duas humanas e duas angélicas, mas ape­nas duas cidades ou sociedades de bons ou de maus, homens ou anjos.

    2.Ora, não se permite pôr em dúvida que as inclinações contrárias entre si dos anjos bons e dos maus não dependem da di­ferença de natureza e princípio, posto uns e outros serem obra de Deus, Autor e Criador excelente de todas as substâncias, mas da contrariedade de suas vontades e desejos. A razão é que, enquan­to uns se mantiveram no bem, comum a todos, que é para eles o próprio Deus, e em sua eternidade, verdade e caridade, os outros, embriagados por seu próprio poder, como se fossem seu próprio bem, declinaram do bem beatífico, superior e comum a todos, aos seus particulares e, tendo por muito sublime eternidade o fausto de sua altivez, por verdade certíssima os artifícios da vaidade e por caridade mútua suas rivalidades repletas de ódio, se tornaram soberbos, enganadores e invejosos.

    A causa, pois, da felicidade daqueles é estarem unidos a Deus. Por isso, a causa da miséria destes devemos entender, ao contrário, que será o não estarem unidos com Deus. Se, por conse­guinte, quando se pergunta por que são miseráveis estes, se res­ponde; Por não estarem unidos a Deus e, quando se pergunta por que são felizes aqueles, se responde: Por estarem unidos a Deus, somente Deus é o bem que torna feliz a criatura racional ou intelectual. Assim, embora nem toda criatura possa ser feliz (pois não alcançam nem são capazes de tal graça as feras, as plantas, as pedras e coisas assim), a que pode sê-lo não o pode por si mesma, mas por Aquele que a criou. Torna-a feliz a posse daquele cuja perda a torna miserável, porque Aquele que é feliz por si mesmo não pode ser miserável precisamente porque não pode perder-se.

    3. Dizemos existir apenas um bem imutável, Deus, uno, ver­dadeiro e feliz. E acrescentamos serem bens as coisas criadas por procederem dele, mas bens mutáveis, por haverem sido feitas, não dele, mas do nada. Embora não sejam supremos esses bens que podem unir-se ao bem imutável (o bem maior que eles é Deus), são grandes. Até tal ponto é Deus seu bem, que sem Ele são necessariamente miseráveis. Nem os demais seres, neste uni­verso criatural, são melhores que eles, porque não podem ser mi­seráveis, pois não é justo dizer serem melhores os olhos que os de­mais membros de nosso corpo justamente porque não podem fi­car cegos. Como a natureza senciente, embora com dores, é su­perior à pedra, incapaz, em absoluto, de dor, assim a natureza racional, embora sendo miserável, é superior à que carece de ra­zão ou de sentido, motivo por que se torna incapaz de miséria.

    Sendo assim, para essa natureza, criada com superioridade tão clara que, mesmo sendo mutável, com unir-se ao bem incomutável, a Deus, supremo, logra a felicidade e não se vê livre de sua indigência, se não é feliz, e para sê-lo não lhe basta senão Deus, é vício não unir-se a Deus. Todo vício prejudica a natureza e por isso lhe é contrário. A viciada difere da que se une a Deus, não por natureza, mas por vício. Apesar de viciada, a natureza dá provas de grandeza e dignidade. Ao censurarmos, com razão, o vício de alguém, louvamos-lhe ao mesmo tempo a natureza, por­que a censura do vício tem por justificativa o fato de ele desonrar a louvável natureza. Assim como, ao dizermos ser a cegueira vício dos olhos, testemunhamos que a visão pertence à sua natureza e, ao dizermos que a surdez é vício dos ouvidos, afirmamos ser-lhes natural a audição, assim também, ao dizermos que o não unir-se a Deus é o vício da criatura angélica, se declara de maneira evi­dente convir-lhe à natureza o unir-se com Deus. Quem poderá pensar ou de modo digno expressar em palavras a grandeza e glória do estar unido a Deus de tal sorte que se viva dele, se tenha a sabedoria dele, dele se goze e se desfrute de tamanho bem sem morte, sem erro e sem incômodo? Donde se conclui que, pois todo vício é nocivo à natureza, o vício dos anjos maus, que os tem separados de Deus, é testemunho eloqüente da bondade de sua natureza, criada por Deus, à qual prejudica não estar com Ele.