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    O chamado ao discipulado - Dietrich Bonhoeffer - (1906 -1945) -


    -Bonhoeffer foi martirizado pelos nazistas em 1945-
    Quando ia passando, viu a Levi, filho de Alfeu, sentado na coletoria, e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu. (Mc 2.14).
    Soa o chamado, e imediatamente segue o ato obediente da pessoa que foi chamada. A resposta do discípulo não é uma confissão oral da fé em Jesus, mas sim um ato de obediência. Como é possível essa seqüência imediata de chamado e obediência? Para a razão natural, isso é cho­cante, e ela se esforça para separar estes elementos tão intimamente li­gados; é preciso interpolar, explicar qualquer coisa; seja como for, é preciso encontrar uma intermediação psicológica, histórica. Pergunta-se tolamente se o publicano não conhecia a Jesus antes, estando, assim, já preparado para segui-lo tão logo ouvisse o chamado. O texto, porém, mantém-se teimosamente mudo acerca deste ponto, dando toda a ênfase à seqüência imediata de chamado e ação. Não lhe interessam razões psicológicas para explicar as decisões piedosas de um ser humano. Por que não? Porque para esta seqüência de chamado e ação só existe uma razão válida: o próprio Jesus Cristo. É ele quem chama, e, por isso, o publicano o segue. Neste encontro é testemunhada a autoridade de Jesus, que € incondicional, imediata e sem explicações. Nada o precede e nada lhe segue senão a obediência da pessoa que foi chamada. O fato de Jesus ser o Cristo dá-lhe todo o poder para chamar e exigir obediência à sua palavra. Jesus chama ao discipulado não como ensinador e exem­plo, mas em sua qualidade de Cristo, Filho de Deus. Assim, neste breve trecho, anuncia-se Jesus Cristo e o que ele espera do ser humano, e nada mais. Nenhum louvor cabe ao discípulo por seu cristianismo decidido. O olhar não deve pousar sobre ele, mas somente sobre aquele que chama e sobre sua autoridade. Não se aponta tampouco um caminho para a fé, para o discipulado; não há qualquer outro caminho para a fé senão o da obediência ao chamado de Jesus.
    Que sabemos a respeito do conteúdo do discipulado? Segue-me! Vai andando atrás de mim! Eis tudo. Segui-lo, eis uma coisa sem conteúdo. Isso de fato não constitui um programa de vida cuja realização fizesse sentido. Não é um objetivo, um ideal pelo qual se deva lutar; nem é algo que, pelos padrões humanos, mereça o sacrifício de qualquer coisa ou de nós próprios. E o que acontece? O ser humano que foi chamado larga tudo quanto tem, não para fazer algo que tenha valor especi­al, mas simplesmente por causa daquele chamado, porque, de outro modo, não pode seguir os passos de Jesus. A esse ato não se atribui o menor valor. Em si, continua sendo uma coisa absolutamente destituída de im­portância, sem merecer atenção. Destruíram-se as pontes e simplesmen­te caminha-se em frente. Uma vez chamada para fora, a pessoa tem que abandonar a existência anterior, tem que simplesmente "existir" no sen­tido rigoroso da palavra. O que é velho fica para trás, totalmente aban­donado.
    O discípulo é arrancado de sua relativa segurança de vida e lançado à incerteza completa (i. é, na verdade, para a absoluta segurança e proteção da comunhão com Jesus); de uma situação previsível e calculável ( é, na verdade, de uma situação totalmente imprevisível) para den­tro do imprevisível e fortuito (na verdade, para dentro do único que é necessário e previsível); do domínio das possibilidades finitas (i. é, na realidade, das possibilidades infinitas) para o domínio das possibilida­des infinitas (i. é, na verdade, para a única realidade libertadora). Uma vez mais, não se trata de uma lei de caráter geral, e sim do exato oposto de todo legalismo. Repetimos, nada mais é senão estar ligado tão-so­mente a Jesus Cristo, ou seja, a subversão completa de todo programatismo, de todo ideal, de todo legalismo. Por Jesus ser o único conteúdo, não pode haver qualquer outro. Ao lado de Jesus não há mais quaisquer outros conteúdos neste caso, pois ele próprio é o único conteúdo.
    O chamado ao discipulado é, portanto, comprometimento exclusivo com a pessoa de Jesus Cristo, a subversão de todos os legalismos mediante a graça daquele que chama. É chamado da graça, mandamento gracioso. Fica além do antagonismo de lei e Evangelho. Cristo chama, o discípulo segue; isso é graça e mandamento ao mesmo tempo. E andarei com largueza, pois me empenho pelos teus preceitos." (SI 119. 45).
    O discipulado é comprometimento com Cristo; por Cristo existir, tem que haver discipulado. Uma concepção de Cristo, um sistema doutrinário, um conhecimento religioso geral da graça ou do perdão não implicam necessariamente o discipulado; na realidade, excluem-no, são hostis a ele. Com a idéia pode-se ter uma relação de conhecimento, de admiração - talvez até mesmo de realização -, mas nunca a relação de discipulado pessoal e obediente. Cristianismo sem Jesus Cristo vivo permanece necessariamente um cristianismo sem discipulado; e cristia­nismo sem discipulado é sempre cristianismo sem Jesus Cristo; é uma idéia, um mito. Um cristianismo no qual só existe Deus Pai, mas não existe Cristo como Filho vivo, exclui o discipulado. Somente porque o Filho de Deus tornou-se ser humano, por ele ser Mediador, é que o dis­cipulado constitui o relacionamento correto com ele. O discipulado está vinculado ao Mediador, e, onde quer que se fale corretamente do disci­pulado, aí se fala do Mediador, Jesus Cristo, Filho de Deus. Somente o Mediador, Deus feito ser humano, pode chamar ao discipulado,
    O discipulado sem Jesus Cristo é a escolha pessoal de um cami­nho talvez ideal, um caminho, quem sabe, de martírio, mas não encerra promessa; Jesus o repudiará.
    E seguiram para outra aldeia. Indo eles caminho fora, alguém lhe disse: Seguir-te-ei para onde quer que fores. Mas Jesus lhe respondeu: As ra­posas têm seus covis e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. A outro disse Jesus: Segue-me. Ele, porém, respondeu: Permite-me ir primeiro sepultar meu pai. Mas Jesus insistiu: Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos. Tu, po­rém, vai, e prega o reino de Deus. Outro lhe disse: Seguir-te-ei, Senhor; mas deixa-me primeiro despedir-me dos de casa. Mas Jesus lhe repli­cou: Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás, é apto para o reino de Deus. (Lc 9.56-62).
    O primeiro discípulo oferece-se ele próprio para seguir a Jesus; não foi chamado, e a resposta de Jesus chama a atenção do entusiasta para o fato.de que este não sabe o que faz. Não o pode, mesmo, saber. É esse o sentido da resposta na qual a vida com Jesus é mostrada àquele discípulo em toda a sua realidade. Aqui fala aquele que está a caminho da cruz, cuja vida inteira é descrita no Credo Apostólico numa só pala­vra: "padeceu". Isso ninguém pode querer por escolha própria. Ninguém pode chamar-se a si próprio, diz Jesus, e suas palavras ficam sem res­posta. O abismo entre a oferta espontânea ao discipulado e o verdadeiro discipulado continua aberto.
    Quando, porém, é o próprio Jesus que chama, ele lança uma ponte sobre o mais profundo abismo. O segundo discípulo quer enterrar seu pai antes de seguir a Jesus. É a lei que o prende. Ele sabe perfeitamente o que quer e o que lhe cabe fazer. Primeiro, é necessário cumprir a lei, depois seguirá o Mestre. Interpõe-se aqui, entre a chamada e Jesus, um mandamento claro da lei. A isso se contrapõe poderosamente o chama­do de Jesus, e, portanto, sob hipótese alguma, algo deve interpor-se en­tre Jesus e a pessoa chamada, nem que seja o que há de maior e mais sagrado - nem que seja a lei. Agora, por amor de Jesus, a lei que se pre­tendia interpor tem que ser quebrada, pois, entre Jesus e aquele a quem ele chamou, ela já não possui quaisquer direitos. Assim, Jesus opõe-se aqui à lei e ordena o discipulado. Só Cristo pode falar assim; é sua a última pala­vra; ninguém pode opor-se. Este chamado, essa graça são irresistíveis.
    O terceiro compreende o discipulado como o primeiro, como oferta que só ele próprio pode fazer, como um programa de vida pessoal, auto-escolhido. Ao contrário do primeiro, porém, julga justo que, por seu turno, imponha condições. Assim procedendo, cai em total contradição. Quer ajuntar-se a Jesus e, ao mesmo tempo, interpõe algo entre si e o Mestre: "Deixa-me primeiro..." Quer segui-lo, mas quer, ele mesmo, impor as condições do discipulado. O discipulado é, para ele, uma pos­sibilidade de cuja realização faz parte o cumprimento de condições e exigências prévias. Assim o discipulado transforma-se em algo huma­namente acessível e compreensível. Primeiro, faz-se uma coisa, e de­pois faz-se outra. Tudo tem sua legitimidade e seu tempo. O discípulo prontifica-se, mas, ao fazê-lo, tem o direito de impor condições. É evi­dente que, nesse momento, o discipulado deixa de ser discipulado. Trans­forma-se em programa de vida que eu faço de acordo com meu critério e posso justificar à luz da razão e da ética. O terceiro discípulo, portanto, quer ingressar no discipulado, mas, no momento em que o afirma, já não quer ser discípulo. Com sua oferta, ele próprio anula o discipulado, pois este não tolera quaisquer condições que possam se interpor entre Jesus e a obediência. O terceiro discípulo entra, portanto, em contradição não somente com Jesus, mas também consigo mesmo. Não quer o que Jesus quer, e também não quer o que ele próprio quer. Julga-se a si próprio, desentende-se consigo mesmo, e isso apenas ao dizer: Deixa-me pri­meiro..." A resposta de Jesus confirma figurativamente este conflito ín­timo que exclui o discipulado: "Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás, é apto para o reino de Deus."
    Ser discípulo significa dar determinados passos. Já o primeiro passo que segue ao chamado separa o discípulo de sua existência anterior. Assim, o chamado ao discipulado cria imediatamente uma nova situação.
    Permanecer na situação antiga e ser discípulo é impossível. A princípio isso era bem visível. O publicano teve que abandonar a coletoria; Pedro teve que largar as redes, para seguir a Jesus. Segundo nosso entendimento, teria havido outras soluções: Jesus poderia ter proporcionado ao publicano um novo conhecimento de Deus e permitir que ele continuas­se em sua antiga situação. Isso seria possível se Jesus não fosse o Filho de Deus feito ser humano. Como, porém, Jesus é o Cristo, tinha que se tornar claro de antemão que sua mensagem não é uma doutrina, mas nova criação da existência. Tratava-se de caminhar realmente com Je­sus. A pessoa que era chamada compreendia que, para ela, só havia uma possibilidade de fé em Jesus, a saber, abandonar tudo e ir com o Filho de Deus feito ser humano.