1. Quando falamos de conversão para Deus, queremos dizer uma mudança, não simplesmente nas obras externas, mas sim no próprio coração. Desse modo, quando Ezequiel exorta ao arrependimento, diz: "Criai em vós coração novo" (Ez. 18:31). E assim Moisés, quando insta com Israel a voltar-se para o Senhor, freqüentemente lhe diz que deve ser com todo o seu coração e com toda a sua alma. Mas nenhuma passagem das Escrituras ressalta a natureza do arrependimento mais claramente de que aquela declaração de Jeremias, "Se voltares, ó Israel, diz o Senhor, volta para mim... Lavrai para vós campo novo, e não semeeis entre espinhos. Circuncidai-vos para o Senhor, circuncidai o vosso coração" (Jer. 4:1-4).
Observem como o profeta aqui diz ao povo que todos os seus esforços em prol de reforma serão em vão, a não ser que em primeiro lugar a maldade seja desarraigada do íntimo do seu coração; afirmando também que terá que se haver com Deus, com quem a hipocrisia nada aproveitará, pois Ele odeia a duplicidade.
2. Nosso próximo ponto a considerar é que o arrependimento procede do sincero temor de Deus. Antes que o coração de um pecador seja movido ao arrependimento, ele precisa ser despertado por pensamentos sobre o julgamento divino.
Quando o coração está totalmente convicto de que Deus um dia subirá ao tribunal para exigir uma prestação de contas de todas as nossas palavras e ações, a consciência não deixará o miserável homem em paz por um momento sequer, e sim continuamente o concitará a mudar o curso da sua vida de tal modo que possa ficar em pé diante daquele julgamento.
Por isso as Escrituras, quando exortam ao arrependimento, freqüentemente fazem menção do julgamento, como na passagem à qual já nos referimos, "Para que o meu furor não saia como fogo, e arda, e não haja quem o apague, por causa da malícia das vossas obras" (Jer. 4:4). E visto que a conversão verdadeira começa com o pavor e o medo do pecado, o apóstolo Paulo fala de tristeza do tipo piedoso (literalmente, "tristeza segundo Deus"), como a causa do arrependimento (2 Cor. 7:10). Esta tristeza não apenas tem medo do castigo, como também odeia e aborrece o próprio pecado, porque desagrada a Deus.
3. Em terceiro lugar, devemos explicar a declaração que o arrependimento consiste em duas partes, a saber, a mortificação da carne e a renovação do espírito do entendimento. Este fato é claramente expresso pelo salmista com palavras tais como estas: "Aparta-te do mal, e pratica o que é bom" (Sal. 34:14) e pelo profeta: "Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor" (Is. 1:16-17).
Quando, dessa forma, eles chamam os homens de volta dos maus caminhos, exigem a completa mortificação da carne, porque ela está cheia de maldade e perversidade, pois o pendor da carne é inimizade contra Deus (Rom. 8:7). O segundo aspecto do arrependimento, a saber, a renovação do espírito do entendimento, é demonstrada pelos frutos que dele brotam — a justiça, o juízo e a misericórdia. É levado a efeito pelo poder do Espírito de Deus, que de tal maneira instila Sua santidade em nossos corações, e assim os enche de novos pensamentos e afeições, que podem ser corretamente considerados novos corações.
Tudo isto nos vem pela união com Cristo, pois se verdadeiramente participamos da Sua morte, nosso velho homem é crucificado pela virtude dela; e se participarmos da Sua ressurreição, somos despertados por ela para novidade de vida.
Esse arrependimento não é questão de um momento, de um dia, ou de um ano; dura a vida inteira, e não há isenção desta guerra senão na morte.