Diz-se que o cristão é um pavio que fumega. Vemos, assim, que a graça não elimina a corrupção toda de uma vez, mas algo é deixado para que os crentes a combatam. As mais puras ações dos mais puros homens precisam de Cristo para perfumá-las; e tal é o seu ofício. Quando oramos, temos que orar outra vez para Cristo nos perdoar pelos defeitos de nossas orações. Considere alguns exemplos desse pavio que fumega: Moisés no Mar Vermelho, estando numa grande perplexidade, e não sabendo o que dizer, ou para que caminho se voltar, queixou-se a Deus. Não há dúvida de que foi isso um grande conflito para ele. Em grande angústia, não sabemos o que orar, mas o Espírito faz petições com gemidos inexprimíveis (Rm 8.26). Corações quebrantados não podem senão produzir orações quebrantadas.
Quando Davi esteve diante do rei de Gate (1 Sm 21.13) e se desfigurou de modo a ficar de uma maneira desagradável, naquela fumaça havia algum fogo também. Tu podes ver que Salmo excelente ele compõe sobre aquela ocasião, o 34, no qual, baseado na experiência, ele diz: “Perto está o Senhor dos que têm o coração quebrantado” (Sl 34.18). “Eu dizia na minha pressa: Estou cortado de diante dos teus olhos”. Há fumaça. “Não obstante, tu ouviste a voz das minhas súplicas” (Sl 31.22). Há fogo. “Senhor, salva-nos, que perecemos” (Mt 8.25), gritam os discípulos. Aqui há fumaça de infidelidade, todavia, tanta luz da fé que os incitou a orar a Cristo. “Eu creio, Senhor”. Há luz.
“Ajuda a minha incredulidade”. Há fumaça (Marcos 9.24). Jonas clama: “Lançado estou de diante dos teus olhos”. Há fumaça. “Todavia, tornarei a ver o templo da tua santidade”. Há luz (Jn 2.4). “Miserável homem que eu sou!”, diz Paulo, com senso de sua corrupção. Todavia, ele irrompe em ações de graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor (Rm 7.24).
“Eu dormia”, diz a igreja em Cantares de Salomão, “mas o meu coração velava” (Ct 5.2). Nas sete igrejas, as quais por suas luzes são chamadas “os sete castiçais de ouro” (Ap 2 e 3), a maioria delas tinha muita fumaça junto com suas luzes.
A razão de tal mistura é que trazemos em nós um duplo princípio, graça e natureza. A finalidade disso em especial é nos preservar daquelas duas perigosas rochas contra as quais as nossas naturezas têm propensão a se chocar, a segurança e o orgulho, e a nos forçar a pôr nosso descanso sobre a justificação, não sobre a santificação, a qual tem, além da imperfeição, algumas manchas. Nosso fogo espiritual é como nosso fogo vulgar aqui embaixo, ou seja, misturado. Em cima, o fogo fica puríssimo em seu próprio elemento; assim serão todas as nossas graças quando estivermos onde vamos estar, no céu, que é o seu próprio elemento.
De tal mistura surge o fato de que os do povo de Deus têm julgamentos tão diferentes de si próprios, olhando por vezes a obra da graça, por outras o resto de corrupção, e quando eles consideram isso, pensam então que não têm graça alguma. Embora amem Cristo em suas ordenanças e seus filhos, todavia, não ousam pretender familiaridade tão próxima quanto a dele. Exatamente como uma vela no pedestal algumas vezes mostra sua luz, e algumas vezes a luz mostrada se perde; assim, por vezes ficam bem persuadidos de si mesmos e, por vezes, perplexos.