Quando o apóstolo chamou o Filho de Deus de "expressão exata do seu ser" (Hebreus 1.3), sem dúvida ele atribuiu ao Pai alguma subsistência na qual ele difere da do Filho (Institutas, I/XII/2).
Pudemos observar na citação de Calvino que ele fez uso de uma palavra técnica que encontramos, com freqüência, na linguagem teológica. Trata-se da palavra subsistência.
Existem três palavras, no idioma português, que têm uma relação íntima umas com as outras, mas que podem ser distinguidas umas das outras. Essas palavras são essência, existência e subsistência.
Uma das perguntas que freqüentemente me fazem pessoas leigas, é: Que é o existencialismo? Todos nós já ouvimos falar no existencialismo, e a maioria das pessoas tem uma espécie de sensação vaga, sombreada, do que esse vocábulo significa. Há um certo clima de existencialismo que tem sido largamente comunicado na literatura, no drama, no cinema e em outras formas de arte.
Um porta-voz importantíssimo em favor do existencialismo, no século XX, foi o autor francês Jean-Paul Sartre, que morreu em 1980. Sartre cunhou uma frase que se tornou uma espécie de slogan ou frase de chamar a atenção para o existencialismo. Essa frase, traduzida para o português, diz: "A existência antecede a essência". Para nossos propósitos, neste particular, podemos passar por cima do sentido filosófico inteiro dessa frase. O que importa, em nosso interesse imediato é que a frase estabelece uma nítida distinção entre existência e essência, ou seja, entre a existência e o ser.
Segundo nossa maneira comum de falar, usamos a palavra existência intercambiavelmente com a palavra ser. Dizemos que as pessoas existem e que Deus também existe. Dizemos que as pessoas são seres, e que Deus é um ser. E distinguimos o ser de Deus e o ser das pessoas chamando-nos de seres humanos, ao passo que Deus é o Ser Supremo. Fazemos isso por reconhecer que Deus pertence a uma ordem de ser superior a nós. Somos seres criados. Somos seres dependentes, derivados, finitos e mutáveis. Em uma palavra, somos meras criaturas. Deus, porém, não é uma criatura. Ele não foi criado, é independente, não é derivado, é infinito e é imutável. Mas ele é um ser.
Quando dizemos que Deus "existe", queremos dizer com isso que ele real e verdadeiramente é. Mas existe um sentido técnico segundo o qual é impróprio dizermos que Deus existe.
Isso pode parecer chocante. De maneira alguma estou duvidando da realidade do ser de Deus. Mas o ser de Deus é mais elevado do que a mera "existência".
A palavra portuguesa existe deriva se de lermos latinos que significam, literalmente, "pôr-se de pé fora de" (ex-, "fora de", mais sistere, "pôr-se de pé"). O que é que as coisas que existem "põem-se de pé fora de"? Originalmente, o conceito era este: Existir é pôr-se de pé fora de". Isso não significa que existir é pôr-se de pé fora do ser por inteiro. Se essa fosse a nossa condição, então não existiríamos. A única coisa que está fora do ser é o não-ser ou o nada.
"Pôr-se de pé fora do ser" é como ter um pé no ser, e o outro no não-ser. O ponto inteiro dessa sutil distinção é abrir espaço para seres criados que são finitos e mutáveis. Nosso ser não consiste em puro ser. Nosso ser é misturado com a idéia de ir-se tornando. Somos tanto reais quanto potenciais. Estamos sempre mudando. Mas Deus não muda. Ele não tem potencialidade. Ele é pura realidade. Ele é eternamente o que ele é. É conforme ele disse a Moisés: "EU SOU O QUE SOU".
A coisa se complica (como seja não estivesse bem complicada). A palavra subsistência estabelece outra sutil distinção. Subsistir significa, literalmente, "pôr-se de pé debaixo de" alguma coisa. Na teologia significa não pôr-se de pé fora de, e, sim, pôr-se de pé sob ser.
Quando João Calvino e outros teólogos falam sobre as pessoas da Trindade, eles querem dizer que, na Trindade, temos uma essência (ser) e três subsistências. As três pessoas da deidade subsistem na essência divina.
A palavra pessoa, na formulação da Trindade, é derivada do vocábulo latino persona. É uma combinação do prefixo per (através) e da raiz sono. Nos teatros romanos, uma persona era uma máscara através da qual os atores falavam. Todos já vimos os símbolos de máscaras que são a marca registrada do mundo do teatro. Há a máscara feliz que simboliza a comédia, e há a máscara triste que simboliza a tragédia.
Houve grande luta por causa do uso da palavra persona, na teologia, por causa de sua origem na linguagem do teatro. O termo grego que se acha no Novo Testamento e que para o latim foi traduzido por persona, e para o português para pessoa, é hupóstasis. Por conseguinte, quando falamos na trindade, falamos na "união hipostática da deidade".
Comentando mais ainda sobre o primeiro capítulo da epístola aos Hebreus, escreveu Calvino:
Visto que a essência de Deus é simples e sem divisões, e que ela contém em si mesma a inteira e plena perfeição, sem divisões ou diminuições, é impróprio e até mesmo ridículo chamá-la de sua imagem expressa (caráter). Mas visto que o Pai, embora se tenha distinguido por suas próprias propriedades peculiares, expressou-se por inteiro no Filho, diz-se, com perfeita razão, que ele fez a sua pessoa (hupóstasis) manifestar-se no Filho. (I/XIII/2).
E referindo-se ao versículo onde a epístola aos Hebreus descreve Cristo como o "resplendor da sua glória", Calvino escreveu ainda:
A justa inferência, extraída das palavras do apóstolo, é que existe uma subsistência apropriada (hupóstasis) do Pai, que brilha, refulgente, no Filho. Com base nisso, novamente, é fácil inferirmos que existe uma subsistência (hupóstasis) do Filho, que se distingue da do Pai. Outro tanto ocorre no caso do Espírito Santo; pois podemos provar de imediato tanto que ele é Deus como que ele tem uma subsistência separada da do Pai. Isso, entretanto, não é uma distinção de essência, que seria uma impiedade multiplicar. Portanto, se dermos crédito ao testemunho do apóstolo, segue-se que existem três pessoas (hupóstasis) em Deus. E visto que os latinos usaram a palavra persona para expressar a mesma coisa que o grego expressava com a palavra hupóstasis, torna-se excessivamente cansativo e até perverso querelar com o termo. A tradução mais literal seria subsistência. (Institutas, I/ XIII/2).
Vemos, pois, que quando a Igreja cristã confessa sua fé em um Deus triúno, ela tenciona transmitir a idéia de que existe uma só essência ou ser, e não três; mas que existem três personalidades subsistentes distintas na deidade. Os nomes Pai, Filho e Espírito Santo indicam distinções pessoais na deidade, mas não divisões essenciais em Deus.
Espero que você tenha acompanhado o argumento até este ponto. Mais importante ainda, espero que você veja o sentido da discussão sobre o Espírito Santo. A maioria dos crentes vai preferir deixar as conversas teológicas ao encargo dos teólogos profissionais, e continuar vivendo a vida cristã. Mas séculos de teologia têm deixado claro que a vida cristã não pode ser vivida corretamente sem as crenças certas como um alicerce. Nem todo crente precisa ser um erudito teológico treinado em seminário. Mas todo crente precisa compreender a natureza de Deus ao qual adoramos (Supostamente, devemos amar a Deus com toda a nossa mente). Algumas vezes, a compreensão é fácil, como quando o pecador, vendo a sua necessidade e vendo a misericórdia de Deus, diz com total sinceridade: "Senhor, sê misericordioso para comigo, um pecador". Mas há ocasiões em que se requer mais trabalho com a cabeça. E no meio de tantas opiniões e declarações conflitantes acerca de Deus e do Espírito Santo, o trabalho mental é essencial.
Todos dispensaríamos toda a teologia técnica sobre a Trindade, se ao menos pudéssemos todos concordar que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são apenas um Deus e, no entanto, que o Filho não é o Pai, nem o Espírito Santo é o Filho, mas que cada qual possui sua subsistência ímpar.
Dentro do plano de criação e redenção, falamos sobre a subordinação de certas pessoas da deidade às outras. Para exemplificar, embora Deus o Filho seja coeterno e coessencial com Deus Pai, na obra da redenção é o Pai que envia o Filho ao mundo. O Filho não envia o Pai. Por semelhante modo, as Escrituras dizem que o Filho é gerado pelo Pai, mas o Pai não é gerado pelo Filho.
Por semelhante modo, acreditamos que o Espírito Santo é enviado e procede da parte do Pai e do Filho juntamente. Mas o Espírito Santo não envia nem o Pai e nem o Filho. E nem O Filho ou o Pai procedem do Espírito Santo. Na obra da redenção, assim como o Filho está subordinado ao Pai, assim também o Espírito Santo está subordinado tanto ao Pai como ao Filho.
Entretanto, estar em uma posição subordinada, não é a mesma coisa que ser inferior. O Filho e o Espírito Santo são iguais ao Pai, e todos os três são iguais quanto ao ser, à glória, à dignidade, ao poder e ao valor.
R. Sproul